segunda-feira, 25 de março de 2013

Lua do Caçador [Guerra do Paraguai - Março de 1870]



Era final de tarde na pequena vila de Comienzo, no distrito de Concépcion, uma cidade próxima à fronteira do Brasil, na margem esquerda do Rio Paraguai. O lugar estava desértico como era de costume naquele horário. Havia apenas algumas poucas pessoas na rua, conversando. Algumas crianças corriam descalças no chão de terra batida, fugindo dos gritos autoritários de suas mães. Subitamente, as poucas pessoas que se encontravam na rua naquele momento haviam parado por completo o que faziam. Sua atenção estava toda concentrada naquele estranho fardado que adentrava a vila a cavalo. Não era a barba espessa e o bigode que chamava tanta atenção. Tampouco era o sabre de um lado da cintura, ou os dois revólveres Colt Dragoon do outro lado que o destacava tanto para aquelas pessoas. O que realmente incomodava aquele povo era o brasão imperial de armas costurado em seu braço direito, indicando que aquele homem era um alto oficial do exército brasileiro.
Ignorando os olhares, o homem desce de seu cavalo, conduzindo-o até uma estrebaria, onde poderia amarrá-lo junto a um poste. Enquanto ele o fazia, um dos locais se aproxima. Sua expressão era de puro desagrado, enquanto sua mão apertava a empunhadura de sua pistola.
—Boa tarde. —Diz o oficial brasileiro, percebendo a aproximação sequer desviando o olhar do cavalo, que não parecia se incomodar em ser amarrado ao poste. O local se detém como se estivesse revendo a sua abordagem.
—Tarde...—ele diz, ainda muito incomodado. —Eu sou o xerife de Comienzo, o que você quer aqui?
—Uma cama, comida, e principalmente informação.
—Informação, é? —O xerife começa a puxar lentamente sua pistola do coldre, tentando não chamar a atenção daquele homem. Sabia o que ele queria, sabia o que devia fazer. Se tudo desse certo, Solano o recompensaria, talvez até com um cargo maior.
—Sim. Há alguns dias um dos Voluntários da Pátria passou por essa vila, e deveria se encontrar com o Coronel Joca Tavares. Tudo leva a crer que vocês o detiveram nesse vilarejo. —O xerife aproveita e saca sua arma. O estourar de um trovão ressoa por aquela vila, o cheiro de pólvora domina a área. Um surpreso homem da lei paraguaio agora estava caído no chão, com a mão no ombro baleado. Ainda de costas, o oficial brasileiro colocava sua Colt de volta ao coldre. Ele estala a língua, irritado com aquela situação. A reação do xerife à sua chegada indicava que ele provavelmente não teria tempo para descansar ou se alimentar direito depois que encontrasse o homem que procurava. O soldado brasileiro alcança o xerife, pegando-o pelo colar da camisa e diz irritado:
—Não tente isso novamente. Agora, me leve até Chico Diabo, por favor?
—C-Certo...certo... —O xerife choraminga, enquanto vai caminhando a um casebre ainda no começo da vila. Ao abrir a porta, revela seu escritório, com uma prisão adjacente. O brasileiro ao entrar percebe uma estranha lança escorada na parede. Ele empurra o xerife ao chão, enquanto caminha até a cela. Seu olhar cruza com o do soldado encarcerado, que abre um sorrisinho ao ver o oficial:
—Então, finalmente decidiu lutar, Hugo? —O homem encarcerado diz, com a voz carregada em escárnio.
—Mataram Angel, Francisco. —Hugo, o oficial brasileiro, dizia com pesar na voz.
—É, eu fiquei sabendo. Solano mandou executar o próprio irmão.
—Ele era nosso amigo, Francisco! —Hugo se exaltava. —Como pode ficar tão calmo?
—Que diabos eu posso fazer preso? —Francisco se levanta, cerrando os punhos. Ele e Hugo eram amigos de infância, porém Hugo era de uma família de grandes posses. Estudou nos melhores colégios, inclusive no colégio da Marinha do Rio de Janeiro, mas Hugo e Francisco sempre fizeram questão de não perder contato. Hugo havia conhecido Angel Benigno Lopez durante seu período no colégio da marinha, e logo os três se tornaram amigos inseparáveis. Isso até Angel ter que retornar ao Paraguai. Hugo posteriormente se formou na Escola Naval, e depois foi convocado para uma espécie de organização militar que respondia diretamente a Dom Pedro II, perdendo contato de vez com seu amigo. —Você ficou viajando a serviço do Pedrinho, enquanto eu estive na luta durante os últimos quatro anos! Espera eu sair daqui pra você ver se eu não te arrebento, seu arrogantezinho de merda!
Com um movimento, Hugo desembainha o sabre. Um arco prateado brilha por um segundo e no seguinte as barras da cela que prendia Francisco caem sem impor grande resistência:
—Mais respeito com o nosso Imperador. —Francisco estava sem palavras, o que Hugo mentalizava como algo inédito. Quando finalmente consegue fechar a boca, Francisco deixa sua cela, saltitante, e caminha até sua lança.
—Então, parece que você finalmente achou uma arma pra rivalizar minha Longino.—Chico diz, satisfeito.
—Depois te contarei os detalhes de minhas viagens, agora temos que nos apressar. —Hugo diz, novamente em seu estado sereno. —Se eles te prenderam, eles já devem saber de nosso plano.
—Na verdade, eles me prenderam porque eu deslizei aos lençóis da filha do xerife.
—Você o quê?!
—E também trapaceei no pôquer.
—Francisco!
—E aí eu tive que bater em alguns dos homens da vila.
—Pombas, Chico! Você não mudou nada!
—Você também não, engomadinho. —Francisco veste sua farda por completo, prendendo a lança às costas. —Não foi você quem falou que devíamos nos apressar?
Os dois caminham para a rua, apenas para se encontrarem cercados por vários dos homens locais. Armados de paus e pedras, nenhum deles portava arma de fogo, mas eram em número muito superior. Chico retira a lança das costas, empunhando-a diagonalmente, em uma postura que Hugo não reconhecia.
—Então, Hugo? Mostra pra mim o que essas suas pistolas bonitas aí podem fazer!
—Essas pessoas são inocentes em nossa guerra. —Hugo solta o sabre de sua cintura, sem retirá-lo da bainha. —Não quero matar ninguém que não mereça a morte, e gostaria que você tentasse se conter também, velho amigo.
—Então dá um tiro pro alto e afugenta todo mundo.
—Também faz muito tempo desde nossa última briga lado a lado, Chico. —Hugo sorri, postando-se em guarda.
—Agora sim você parece o Hugo!
Os dois avançam contra o grupo de homens. Hugo os derrubava com golpes pesados do sabre embainhado. Chico, atendendo ao pedido de seu amigo, não os atacava com a lâmina de sua lança, mas também não pegava leve. Dentes voavam, ossos quebravam, e em questão de segundos, os dois haviam nocauteado sozinhos doze homens.
Chico não demora muito e localiza o seu cavalo, logo se juntando a Hugo. Os dois já preparados estavam para deixar a vila para trás, quando percebem uma tempestade de poeira e areia se aproximando.
—O que é isso? —Pergunta Hugo, protegendo os olhos com o braço.
—Ei! —A essa altura, o barulho causado pela tempestade obriga a Francisco gritar para o amigo escutá-lo. —Sabe aquelas coisas todas que eu te falei que fiz aqui nessa vila e por isso eles me prenderam?
—Sim. O que tem?
—Então, eles até me perseguiram por causa delas, mas na verdade, eles só conseguiram me prender por causa desse bicho aí.
—Mas que diabos é isso?
—Curupira.
—Ah, você está brincando. —Hugo diz, irritado. A tempestade se interrompe, revelando um homem grande, de quase três metros, com longos cabelos vermelhos, caindo de forma caótica sobre o rosto daquela criatura. Se isso não fosse o suficiente para convencer Hugo de que estava diante de uma criatura sobrenatural, os pés virados para trás eram uma evidência irrefutável.
Ele saca o par de revólveres e antes que Chico pudesse protestar as Colt Dragoon já gritavam, disparando chumbo quente na direção da criatura. Onze disparos são feitos, todos acertando em cheio na cabeça, peitoral, e braços do monstro, mas todos eles parecem simplesmente retardar brevemente a criatura.
—Balas não adiantam, Hugo.—Chico diz, colocando-se a frente do amigo, com a lança em mãos. —O máximo que consegui foi feri-lo com a lança. —Dito isso, Hugo desembainha o sabre, para satisfação de seu amigo.
—Se é assim, então não vamos perder mais tempo, Chico!
Com um meneio de suas cabeças, como combinando gestualmente suas ações, ambos avançam na direção do Curupira, com suas armas em riste. A criatura, por sua vez, sorri ao erguer suas mãos. Sem dificuldade ele apara o sabre de Hugo, segurando-o abaixo de sua curvatura, próximo à guarda, de modo que não havia o corte necessário para feri-lo. Com a lança de Chico, ele apenas precisava evitar a ponta.
Valendo-se de sua força descomunal ele joga Hugo, ainda agarrado ao sabre, para cima de Chico, fazendo com que os dois tombassem no chão. Eles tentam se levantar o mais rápido possível, mesmo que deselegantemente, para não ficarem desguarnecidos contra o Curupira. Chico empurra Hugo para o lado, rolando na direção oposta e escapando por pouco de um pisoteio do monstro, que levanta muita poeira com o impacto e o peso de seu corpo.  Os dois aproveitam a aproximação da criatura e arriscam um novo ataque. O sabre desenha um arco no ar, atingindo as costelas do Curupira. A lança logo em seguida encontra o estômago desprotegido de seu adversário. Os dois comemoravam em pensamento o sucesso de seu ataque, mas logo percebem que a criatura mal havia se abalado. Mais uma vez eles são arremessados para longe, dessa vez sem conseguirem se agarrar a suas armas, que agora estavam nas mãos de seu adversário:
—É, Hugo. Acho que agora já era! —Chico diz, se levantando à medida que se recuperava do baque que sofrera. O Curupira se aproximava ameaçador, com lança em uma mão, e o sabre na outra.
—Não. —Hugo diz, sem realmente conseguir impor ânimo em sua voz. —Não podemos perder. —Os dois se levantam uma vez mais, erguendo os punhos. Os dois partem para o ataque, tendo em mente de que aquilo seria praticamente inútil. Porém, antes que sequer pudessem trocar golpes com o Curupira, o monstro é atingido nas costas por uma saraivada de flechas. A criatura sente o golpe, mais do que havia sentido a lança e o sabre, e quando volta sua atenção para quem lhe atacava, é varado por uma espada de duas mãos. O espadachim era um homem bem mais velho do que Hugo e Chico, e trajava farda militar semelhante a do lanceiro. Aquele era o Coronel dos Voluntários da Pátria, o senhor Joca Tavares.
Curupira se debate, grunhindo em dor enquanto tentava se livrar do coronel. Mais uma série de flechas o atinge com precisão, todas elas passando ao lado ou por cima de Joca. O espadachim retira a espada da barriga do e com um salto, desfere um golpe que separa a cabeça do monstro de seu corpo. Ele observa a criatura, enquanto limpa a lâmina de sua arma. Guardando a espada em suas costas, Tavares se dirige aos dois homens caídos, que finalmente recuperavam a lança e o sabre.
—Chegou em boa hora, Coronel! —Chico saúda o seu superior, com um sorriso no rosto. Tavares, por sua vez, cumprimenta seu subordinado com um soco no rosto, que o derruba uma vez mais. Chico já estava ficando saturado de cair ao chão. —Mas que...
—Você não é um idiota, Francisco! Pare de se comportar como tal! Quase arruinou nossos planos.
—Escute. —Hugo segura o braço de Joca, que parecia prestes a arriscar mais um soco. —Eu agradeço pelo resgate, mas não acha mais seguro sairmos logo daqui? Sempre haverá tempo para discutir, mas é melhor fazê-lo quando estivermos seguros. —Os dois trocam olhares furiosos, até que a tensão no braço do coronel se alivia e ele se dirige a um cavalo. Chico se levanta e busca os cavalos dele e de Hugo. Em pouco tempo os três já estavam montados e deixando a pequena vila de Comienzo para trás.

Após alguns minutos de cavalgada, o trio é recebido por outro dos Voluntários da Pátria. Hugo repara no arco em suas costas, o que denunciava que era ele quem estava dando apoio ao coronel. Encontrá-lo naquele ponto também indicava que sua maestria no manejo do arco fazia com que os disparos fossem fáceis, mesmo com tamanha distância o separando do campo de batalha. Pela primeira vez toda aquela situação o atinge mentalmente: o monstro derrotado, aquelas pessoas com quem cavalgava. O que diabos estava acontecendo?
Tinham feito duas paradas para se alimentarem e na segunda, como a noite já caía, decidiram levantar acampamento. Hugo era um tipo orgulhoso, e mais que isso, cético a todas aquelas coisas sobrenaturais. Fazia um esforço enorme para fazer aquela situação entrar em sua cabeça. Na hora da luta havia sido fácil, não havia outra opção. O coronel havia percebido o semblante compenetrado do jovem soldado, enquanto ele recarregava suas Colt Dragoon com munição. Tavares joga lenha para abastecer a fogueira que haviam acendido há pouco e senta-se ao lado do rapaz:
—Dificuldade de absorver a situação, garoto?
—Pode dizer que sim.
—É, eu vou te dizer: Estou nesse ramo há uns doze anos, e mesmo assim meu coração sempre parece pular uma batida toda vez que encontro um desses monstros.
—Aquilo...era mesmo um Curupira? O Chico...
—O Chico poderia estar apenas de zombaria, é isso que está pensando, não é?
—Bem, eu o conheço desde que éramos crianças.
—E é justamente por isso que não consegue acreditar que ele estaria zombando, embora essa resposta fosse bem menos complicada para você. —Hugo bufava, como se o fato do coronel estar certo o incomodasse mais ainda.
—Por que as balas não o afetavam? —O rapaz diz, contemplando suas armas, antes de guardá-las no coldre.
—Chico tinha essa mesma dúvida quando comecei a treiná-lo. Acontece que essas criaturas podem até ter corpo físico em nosso plano, mas a essência delas se encontra num plano de existência diferente. Existem algumas formas de atingir a criatura em dois planos diferentes, como encantos e feitiços específicos.
—Magia?—Hugo diz, no fôlego de uma risada contida.
—É, garoto. Magia é tão real quanto aquilo que chamamos de ciência, não duvide nunca disso. Aliás, é justamente esse o motivo para a Guerra não ter acabado ainda, e o motivo dos Voluntários da Pátria terem se formado.
—O que quer dizer com isso?
—Nós somos um ramo de uma organização que dedicou toda sua existência na caça de criaturas sobrenaturais que saíram da linha. Uma ordem de caçadores de demônios. —Joca estende seus braços, como se tentasse englobar os seis homens de seu grupamento. —A Armada Milenar.
—Eu não vou nem mais ficar fazendo cara de surpresa com essas informações. Por favor, prossiga.
—Francisco Solano López não é nenhum gênio militar, estratégico ou sequer político. Mas ele tem um trunfo que o tem mantido vivo desde que essa guerra começou. Um artefato conhecido como Pedra de Steuerung. Ela serve para controlar qualquer demônio que atravessa para o nosso plano. A pedra foi criada por um ocultista, um homem chamado John Dee, como medida de contenção e recuperada recentemente por um dos membros de nossa Armada, que Solano matou.
—Angel! —Hugo diz, exaltado. —Então ele era membro de sua ordem!
—Sim. Solano não tinha a menor ideia disso quando o eliminou. Ele buscava apenas o controle político do Paraguai, mas conseguiu algo tão bom quanto de presente.
—E quanto ao fato de não conseguirmos ferir os demônios com armas de fogo? —Hugo parecia muito mais interessado a partir daquele momento, como se finalmente tivesse parado de questionar aquela informação, e simplesmente a aceitasse.
—Isso se deve ao fato de não estarmos lutando contra o demônio em si, mas apenas sua manifestação física. Quando eliminamos uma dessas criaturas, apenas cortamos seu elo com o nosso mundo, como se destruíssemos sua casca. Entende?
—Hm. —O jovem soldado ainda não compreendia por inteiro, fazendo gesto para que Joca continuasse.
—É complicado de explicar, mas digamos que sua espada é um condutor muito melhor para sua vontade de destruir a criatura do que as balas de sua pistola. Isso porque o contato entre o projétil e seu espírito é bem pouco. Já sua arma está sempre contigo, toda vez em que a empunha, o nível de sua intimidade com ela aumenta, desse modo aumentando suas chances de causar dano a essas criaturas.
—É um tanto complexo, não acha?
—Até hoje ainda não tenho certeza se entendi direito como funciona. —Ele ri, repousando as mãos nas próprias pernas. —Apenas sei que funciona. Está ficando tarde, garoto. Vá dormir. —Joca se levanta, usando uma sacola de viagem como travesseiro e deitando ao relento, sobre uma esteira. —Amanhã planejaremos nosso ataque contra Solano. Precisarei de todos vocês em plena forma.

Os homens do grupamento já haviam todos se recolhido a seu sono profundo. O único que não conseguia descansar era justamente Hugo Ramos, o oficial da guarda imperial. Toda aquela conversa o havia deixado inquieto. Ele se levanta, abre um cantil e joga a água sobre seu rosto, como se quisesse lavar todas as dúvidas que sentia. Ele olha para seu cavalo, e o sabre pendurado junto à cela o convidava. Em poucos instantes, o rapaz já o tinha desembainhado, e arriscava alguns golpes diferentes. Quase meia hora passa, e a frustração do rapaz só aumenta. Não entendia os conceitos explicados pelo coronel, e acreditava que se não compreendesse, não poderia vingar a morte de Angel.
Ele se ajoelha, desamparado, e apoia-se no sabre. Uma mão logo repousa sobre seu ombro, fazendo com que se assustasse. Ele dá um passo à frente, virando-se imediatamente com o sabre em riste, apenas para ver o arqueiro do grupo o observando.
—Quer me matar do coração?
—De forma alguma, amigo. —O arqueiro diz, sorrindo. —Apenas achei estranho que não estivesse dormindo. —Os dois ficam em silêncio por um bom tempo. Hugo parecia envergonhado por ter sido pego de surpresa, enquanto que o arqueiro simplesmente parecia buscar uma resposta. —É difícil ser o novato, não é?
—Escuta...err...—Hugo se detém, ainda não sabia o nome do homem com quem conversava.
—Santiago. Luís Santiago. —Ele diz sorridente, estendendo sua mão.
—Então, Santiago. —Hugo o cumprimenta de forma apropriada, nunca esquecendo sua educação. —Eu simplesmente não entendo. Como você e o coronel conseguiram derrotar a criatura, enquanto eu e Chico tivemos um trabalho enorme para conseguir causar um mero arranhão?
—Sabe, eu acho que o coronel explica a ciência de nossa luta de forma um tanto equivocada.
—Ah, é?
—Sim. A questão de intimidade com a arma é realmente relevante, mas se fosse simplesmente isso, eu teria muita desvantagem, pois embora seja íntimo do arco, o que realmente atinge meu adversário é a flecha. Então, não pode ser simplesmente a intimidade, certo?
—Acho que sim.
—Então, o que você precisa saber é que seu espírito precisa estar coreografado com seu golpe. Cada ataque, cada estocada, tem que conter parte de sua alma na ponta da espada. Não pode ser efêmero. Não pode ser algo em vão.
—E como podes dizer que minha alma não está em cada golpe que desfiro? —Hugo diz quase num clamor. —Se tudo que minha alma mais quer é vingar a morte de meu amigo?
—Talvez o que seu amigo precise não é de vingança. Mas sim de justiça. —Santiago sorri, colocando as mãos nos bolsos de sua calça. —A vingança é poderosa, Hugo. E ela pode ter te conseguido esse sabre, e te mantido vivo até o momento. Mas a justiça é algo ainda mais poderoso. Se contar com esse poder, poderá se tornar mais útil à nossa Armada do que até mesmo o coronel. —Santiago parte para onde estava sua sacola, bocejando como que mostrasse sua intenção de encerrar o assunto e finalmente descansar. Hugo logo segue para sua esteira, carregando aquele novo ensinamento a seus sonhos. Logo ao lado, Chico ouvia tudo, assimilando o que pudesse para também poder vingar a morte de Angel.

Depois de um café da manhã improvisado, os homens cavalgam apressadamente. O silêncio que reinava parecia exibir o peso que aqueles homens carregavam em seu peito. Aquela guerra já havia durado demais. Seu país não era o único a sofrer os efeitos e mazelas daquela disputa estúpida. O Paraguai mesmo enfrentava dificuldades absurdas por conta da vaidade de um homem. Derrotar os exércitos de Solano não seria o suficiente enquanto ele tivesse sua legião demoníaca sob seu controle, e aqueles oito homens teriam que ser o suficiente para que acabar com as pretensões daquele maníaco.
A viagem dura manhã e tarde. A informação sobre a localização de Solano parecia correta. Ao cair da noite, eles conseguiam ver ao longe a fortaleza do déspota. Fortaleza entre aspas, pois consistia em muros de madeira improvisados, com apenas um portão frontal, e uma única torre de vigilância. Imaginavam quantas criaturas e monstros teriam que enfrentar até chegar ao verdadeiro adversário. Conseguiam destacar algumas figuras se movendo no perímetro da fortaleza, era a hora de colocar seu plano em prática:
—Santiago. —O arqueiro acena ao ouvir a voz do coronel Tavares lhe chamando. —Sabe o que fazer. —Joca via seu subordinado partir em disparate com mais três outros soldados. Eles seriam a primeira força de ataque. Um ataque frontal, quase suicida.
Quando chegam próximos da entrada, Santiago e seus companheiros conseguem ver que algumas das criaturas, dos mais sortidos demônios, haviam reparado em sua presença. Uma flecha corta o ar, caprichosa, e atinge um dos monstros da torre de vigilância em seu olho. A queda do demônio chama mais atenção para o grupo, que logo se vê perseguido pelos inimigos, reduzindo bastante a vigília da fortaleza. Santiago e seu grupo de apoio liderariam aqueles monstros para longe, servindo como distração.
—Agora! —Joca diz aos três homens que ficaram ao seu lado. Os cavalos relincham uma vez antes de partir para o ataque. Joca abria caminho com sua espada de duas mãos. A violência de cada golpe era ampliada pelo galope de seu cavalo. Hugo não conseguia esconder sua admiração, enquanto que Chico urrava com a adrenalina da batalha tomando seu corpo.
Em poucos instantes eles estavam dentro da fortaleza. Conseguiam ver alguns soldados, todos eles com aparência magra, decrépita. Um par de demônios, que devia servir de guarda pessoal de Solano, logo se posta em guarda com a invasão. No centro, um decorado trono servia de descanso para o único homem gordo que haviam visto no Paraguai desde que a guerra começara. Solano tinha aparência odiosa, com seu sorriso debochado e sua espada cravejada de diamantes em uma das mãos. Na outra mão, uma pedra negra do tamanho de um crânio humano chamava bastante atenção. A Pedra de Steuerung estranhamente brilhava com a luz da lua.
—Então vocês realmente chegaram até aqui? —Solano diz, com a voz embargada pela bebida. Não parecia sequer se lembrar de quantos demônios havia deixado na entrada para impedir o avanço dos brasileiros. —De que adianta a resistência de vocês, agora que tenho isso? —Ele mostra a pedra, desinteressado. —Esqueçam...não me interessa. —Com um gesto, ele comanda que os dois demônios ataquem o quarteto. Suas peles eram de um branco cadavérico, enquanto que seus olhos eram de um tom negro incólume. Joca e o soldado da Armada partem para enfrentar um dos demônios, enquanto Hugo e Chico cuidariam do outro. Os soldados de Solano, caso não estivessem claramente debilitados pela fome, talvez até ajudassem seu ditador. No estado em que se encontravam, porém, mal serviam como espectadores do confronto.
Joca lutava de forma elegante. Nenhum de seus movimentos era desnecessário, sendo calculados de forma fria, como se não quisesse desperdiçar energia. Seu ajudante, porém, não partilhava da mesma experiência, contando apenas com seu coronel, que chamava a atenção da criatura que enfrentavam sempre que percebia que seu subordinado poderia correr perigo. O coronel ainda não tivera uma clara oportunidade para seu ataque decisivo, e pensava consigo mesmo os quão mais fortes do que o Curupira aqueles demônios eram.
Hugo e Chico pareciam ter assimilado melhor a forma de combate da Armada Milenar. O monstro tinha dificuldades para acompanhar seus movimentos, e agora parecia que os golpes da dupla surtiam muito mais efeito. Num fulgor, Hugo havia desferido um corte circular na barriga do monstro, que ao se abaixar por sentir o golpe, tem o pescoço trespassado pela lança de Francisco. A busca por justiça realmente parecia tê-los deixado mais fortes. Pareciam mesmo estar mais em contato com suas armas.
O coronel tinha finalmente achado uma abertura. Usara seu subordinado como isca para que a criatura que enfrentava abrisse a guarda. Um corte perfeito, e o monstro havia sido partido ao meio, deixando um cheiro forte de enxofre correr pela fortaleza improvisada. Joca auxilia seu discípulo a se levantar, quando é surpreendido por uma lâmina varando sua barriga. Uma adaga. Solano torcia a arma, como se garantisse que o coronel Tavares não seria mais um empecilho. O jovem soldado, surpreso, tenta ajudar, mas atrapalhado por seu desespero, é um alvo fácil para a espada cravejada de diamantes do ditador paraguaio, que o decapita sem pesar.
—Malditos! —Solano diz, enfurecido. Ele embainha a adaga, e empunha a pedra novamente, como se convocasse todos os demônios sob o seu poder. Sem saber se Santiago havia conseguido lidar com os demônios que o perseguiam, ou mesmo a distância a que estariam agora, Hugo não poderia vacilar. Sua mão corre rápida até o coldre de uma de suas Colt, e, num instante, seis disparos são feitos, quatro deles atingindo a pedra, que vai em pedaços ao chão, e duas pegam na mão e no antebraço de Solano.
Quando o ditador brande sua espada, enfurecido e surpreso, Chico já estava perto o suficiente para estocá-lo com sua lança. O ditador engasga em suas lágrimas, indo ao chão pesadamente. Francisco remove sua lança do corpo do homem que havia causado problemas por quase meia década, sentindo-se revigorado, sentindo que finalmente poderiam trazer justiça a seu amigo Angel. Esse sentimento era compartilhado por Hugo, que caminhava até o coronel Tavares, desanimado por perder aquele valoroso companheiro de batalhas.
Ele se apoia no sabre, ajoelhando-se para fazer uma reza ao guerreiro que jazia tombado no campo de combate. Seus murmúrios e lamentos eram interrompidos por uma risadinha vinda de Chico. Um olhar mais atento, revela que o coronel respirava. Ainda estava vivo.
—Coronel! —Chico diz, ajoelhando-se ao lado de Hugo. —Nós vencemos, coronel!
—Vencemos...? —O homem, debilitado pelo seu ferimento diz. Ele olha ao lado e vê seu pupilo assassinado. Não sentia vontade de comemorar. Ele se levanta, com a ajuda dos amigos de infância, e os três caminham em direção a Solano.

—A vitória...—O tirano diz, sufocando em seu sangue. —A vitória deveria ser minha.
—Deveria. Poderia. Você só não contava com a Longino de Chico Diabo, Solano! —Francisco alcança sorridente a adaga na cintura do rechonchudo déspota, e a amarra em sua cintura. —Ei, nós temos as mesmas iniciais! —Ele diz, ao perceber as letras “FL” gravadas na bainha de ouro. —Acho que vou ficar com esse suvenir.
Nesse momento, Santiago e seu grupo chegavam à fortaleza. Carregavam alguns ferimentos, mas nada de muito grave.
—Coronel, temos que sair daqui! Agora!
—Do que está falando, Santiago?
—Os demônios parecem que voltaram ao seu próprio controle, e não estão nada satisfeitos com o que Solano fez! Eles estão vindo para cá, e eu que não quero estar no caminho deles!
Apressados, eles recolhem todos os pertences que poderiam, e logo montam em seus cavalos para partir. Hugo, por sua vez, se detém em frente daquela maldita pedra. Aquele artefato que havia custado a vida de Angel, a vida de um jovem soldado dos Voluntários da Pátria. Ele saca sua outra Colt Dragoon e, com mais seis tiros destrói por completo o que havia restado da Pedra de Steuerung.
Solano via os brasileiros partirem. Ainda estava vivo. Ainda não estava derrotado. Não importava se aqueles homens venceram aquela batalha, ele ainda tinha uma guerra para lutar. Assim pensava o ditador paraguaio, até que um mar de demônios, criaturas de toda sorte, começavam a invadir a fortaleza. Os gritos foram escutados mesmo pelos soldados brasileiros, que haviam se apressado para não serem pegos no caminho dos monstros. Solano havia encontrado o seu merecido destino, finalmente.

Após a derradeira batalha, os quatro heróis haviam conseguido se reunir apenas duas vezes. Uma delas fora semanas depois, na cerimônia de condecoração pela vitória e virtuosismo em combate. Joca, Chico e Santiago também aproveitaram essa cerimônia para receber Hugo na Armada Milenar como membro oficial, e não um mero apoio enviado por Dom Pedro II. Depois daquele dia, os quatro nunca mais lutariam lado a lado ao mesmo tempo, mas os quatro anjos da Armada Milenar continuariam sendo lendas por mérito próprio.
A segunda vez em que se encontraram fora no casamento de José Francisco Lacerda, vulgo Chico Diabo. Dos quatro anjos, que receberam esse nome em homenagem ao amigo Angel, apenas três estavam operantes. Santiago havia se aposentado dos serviços da Armada para viver uma vida tranquila no campo, nas terras que haviam sido dadas como prêmio por seus serviços à pátria. Hugo continuava na guarda imperial, sendo agora o encarregado por assuntos de ordem “extraordinária”, outra palavra para “sobrenatural”. Joca dava prosseguimento ao treinamento de Chico, criando no rapaz um sucessor mais do que digno para no futuro ocupar sua função.  
Hugo e Chico continuaram mantendo contato por carta, e ocasionalmente lutaram lado a lado, como veteranos da Armada Milenar, até o dia em que morreram. Aqueles que os acompanharam no campo de batalha, sempre irão lembrar a busca implacável dos dois por justiça. 


Coronel Joca Tavares (terceiro sentado, da esquerda para a direita) e seus auxiliares imediatos, incluíndo José Francisco Lacerda, mais conhecido como Chico Diabo (terceiro em pé, da esquerda para direita).
Foto de 1870


quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Coletânea dos Registros do Shinsengumi

"Estandarte do Shinsengumi"


Parte Final - Incidente do Un'yō

Último Registro: [Ganghwa, 1875 - Incidente do Un'yō]

Por Homura Masato

Estamos a bordo do "Un'yō" o navio de guerra comandado por Inoue Yoshika, rumo à ilha de Ganghwa, na Coreia. O Japão enxerga a Coreia como um ponto estratégico que pode se voltar contra nossa nação, caso a China ou a Rússia tomem controle. Com medo, estamos fazendo o mesmo que os ocidentais fizeram conosco quando seus navios negros chegaram com seu "Tratado" de Kanagawa. Ameaçar e chamar de tratado é fácil quando se é mais forte. Não me arrependo de ter escolhido meu lado naquela ocasião.
O imperador achou por bem levar alguns membros menores da antiga Shinsengumi, desmantelada desde a nossa derrota na Revolução Meiji, para a operação do ''Un'yō''. Imagino que essa seja a definição dele de ironia. Quanto a mim, não é por isso que estou aqui. Não fui chamado para ser bucha de canhão tal qual meus companheiros.
A Armada Milenar me infiltrou nessa operação para investigar ações suspeitas na Coreia. A ilha de Ganghwa noticiou muitos eventos nesses últimos anos que podem ser associados a demônios: mulheres desapareceram das vilas. Homens perderam a vontade de viver, andando a esmo como se fossem um invólucro vazio. Sei quem está por trás disso. Sei como detê-lo.
Foi enviado primeiramente um barco menor, como precaução. A Ilha de Ganghwa foi alvo de diversos ataques estrangeiros na última década, e não sabíamos como eles iam reagir a uma embarcação japonesa. O resultado foi a morte tola de cadetes valorosos da antiga Shinsengumi. O ''Un'yō'' forçou sua entrada, usando seus canhões para silenciar as armas coreanas. Enquanto Inoue bebia comemorando sua invasão, eu bebia em nome de meus camaradas.
Sinto falta de casa, meu filho a essa altura já deve ter 9 anos. Eu não o vejo há 4 . Ele me perguntou, antes que eu partisse, como eu havia perdido o braço. Eu lhe disse que foi lutando para que ele estivesse sempre seguro, e que eu continuaria fazendo o mesmo e por isso precisava partir. Ele então disse para que eu partisse, e que ele protegeria a mãe dele, para que eu lutasse e voltasse logo para casa. Meu filho será um grande membro da Armada Milenar.
Duas noites depois, eu encontro o que procurava. Num bosque cerrado, havia um altar que não fazia muito esforço para se esconder: A lua revelava corpos decompostos em meio aquele altar, parcialmente devorados. Pelas marcas, pelos sinais de luta, eles foram devorados enquanto ainda estavam vivos. Ele aparece, logo em seguida: cabelos ondulados, na altura do ombro, pele branca, no tom próximo ao de um cadáver, olhos negros sem o menor brilho. N'Zhambi, um Loa, um espírito do Vodu. Ligado diretamente a criação, vida e morte, ele se auto proclamou um deus moderno. Nos encontramos brevemente na Europa, dois anos atrás. Depois de um árduo combate, ele me revelou que estava apenas assumindo seu lugar de direito, e que matava apenas para dar uma nova vida a suas vítimas, criando seu exército para tomar o mundo e ser louvado por todos.
Eu saco minha Kotetsu. Aprendi a manejá-la bem, mesmo dispondo de apenas uma mão. Os corpos devorados se levantam com um comando de N'Zhambi. Eu odeio zumbis.
Com alguns movimentos, eu os dilacero, me certificando de causar grande dano em suas cabeças, para que não me incomodem mais. Quando percebo, algo próximo a 25 corpos se estendiam no chão, ao longo do percurso que me separava de N'Zhambi. 
Eu ataco ele com um movimento circular, empunhando a katana ao contrário. Minha lâmina encontra o peito do demônio, e seu sangue jorra sujando minhas vestes. Ele me acerta um chute no peito, e eu caio, tentando rolar. Infelizmente não sou mais tão jovem, e meu corpo demora para se recompor. N'Zhambi aproveita para correr de volta para o altar em que havíamos nos encontrado. Aparentemente ele havia começado um ritual, e agora eu tinha a nítida impressão de que ele o anteciparia devido a minha intervenção.
Resmungando algumas palavras que eu não poderia compreender, o altar brilha numa luz opaca, viciada. Os corpos no chão começam a se decompor mais, como se eles se tornassem energia que N'Zhambi absorvia. Num ato de desespero, eu embainho a espada e utilizo uma técnica complicada de desembainhamento, que arremessa a Kotetsu como uma flecha, perfurando o peitoral de N'Zhambi e o jogando ao chão, inerte, morto.
O membro de apoio da Armada Milenar me encontra algumas horas depois, e me ajuda a dar um enterro digno a todas aquelas vítimas. Fico imaginando qual seria o plano de N'Zhambi, e para que aquele ritual servia. Um jovem coreano surge logo depois, agradecendo por ter sido salvo. Parece que estava sendo mantido vivo para algo relacionado ao ritual também. Ele se despede, mas a falta de brilho nos olhos dele me incomoda. Antes que eu possa alcançá-lo, ele já havia sumido.
Enquanto retorno para o Japão, noto que minha mão treme involuntariamente. As marcas de sangue saem com facilidade de meu quimono, mas não de minha pele, não importa o quanto esfregue ou lave. 
Temo que não serei útil para a Armada Milenar por muito mais tempo.
 
Símbolo de Damballa Weddo - Outro nome de N'Zhambi

sábado, 24 de dezembro de 2011

Terceiro Registro: [Fushimi, 1868 - Batalha de Toba-Fushimi]

Por Homura Masato

"Relatório do confronto de 02/01/1868 - Fushimi.
Chovia quando entramos no campo de batalha. Ao meu lado estava Hajime Saito. Nos poucos dias em que conversamos, acabamos por nos conhecer melhor, e o respeito se tornou mútuo. Não havia outro espadachim que eu quisesse ao meu lado naquele momento. Além dele ser capaz de colocar sua alma na ponta da espada como um verdadeiro caçador de demônios, sua lâmina ainda tinha o nome de lâmina de um demônio. Superstição nesses momentos, quando está a nosso favor, é sempre bem-vinda. 

Do outro lado da clareira onde abordamos nossos adversários, conseguíamos ver uma dúzia de criaturas diferentes uma das outras. Dentre os demônios, haviam dois que se destacavam, principalmente por sua aparência mais humana. Um deles exibia um protuberante nariz, enquanto trajava uma armadura samurai bem antiga, que parecia poder desmanchar com qualquer golpe. O outro tinha cabelos prateados, compridos, e parecia rosnar. Havia a estranha impressão de que ele deixava pegadas de neve por onde passava, mas não havia qualquer sinal de neve naquele dia.

A batalha começou, e eles fizeram valer a fama que tinham. Mesmo que estivéssemos em número maior, apenas alguns membros da Armada Milenar conseguiam lutar em igualdade com aqueles demônios. Assim que o confronto começou, eu percebi que tipo de monstros enfrentávamos. O de nariz protuberante e armadura era nada menos que um Tengu. Posteriormente ele nos revelou que havia entrado nesse combate apenas pela diversão. Isso não é um alento para os soldados que perderam suas vidas nesse campo de batalha.
Enquanto eu enfrentava o de cabelos prateados, que eu descobri ser um demônio lobo da neve, Saito enfrentava um dos onis que nos cercavam. Ele conseguia lutar contra aqueles monstros sem grandes dificuldades, mas aquele oni em particular estava dando trabalho ao comandante da terceira unidade do Shinsengumi.
Saito o derrubou com uma estocada incrivelmente rápida, e quando o oni foi ao chão, sua aparência mudou. O rosto com chifres e a carranca dá lugar a um homem de óculos. Eu não consegui acreditar, mas estávamos na frente de Takeda Kanryusai, o capitão do Shinsengumi que havia sido assassinado alguns meses antes.
Corriam boatos de que o próprio Saito havia assassinado Takeda, tendo descoberto que ele havia traído o Shinsengumi e estava se aliando aos imperialistas de Satsuma. Saito não parecia abalado pelo oni assumir aquela aparência, eles apenas trocam uma risada seca e partem para o combate novamente. Era estranho saber que Takeda Kanryusai, o homem que capturou Furutaka Shuntaro, o homem indiretamente responsável pela fama e respeito que o Shinsengumi havia adquirido no incidente da hospedaria Ikeda pudesse ter sido um traidor. Não tão estranho era pensar que Hajime Saito era tão focado a ponto de matar um companheiro de anos a fio pela suspeita dele ser um traidor. Saito era esse tipo de homem, um homem que levava a sua justiça até as últimas consequências.

Meu combate também não estava nada fácil. Lobos são criaturas terríveis, mas se ele era um lobo demônio da neve, eu sempre serei um Lobo de Mibu. Eu sabia que se me descuidasse, aquela criatura poderia me matar num piscar de olhos. Eu deixei ele me acertar um golpe de sua lança, porém tive o cuidado de não deixar a lâmina me tocar. Bloqueando o golpe com meu braço, eu diminuí o espaço entre nós dois, deixando-o perto o suficiente para que sua lança se tornasse inútil. Meu último golpe com o braço direito foi um corte diagonal. Eu usei a resistência e o atrito do chão para ter que forçar mais a espada, criando um efeito chicote que potencializou meu ataque. Ainda assim, não foi o suficiente para matar aquele demônio. Meu braço direito já havia congelado por inteiro, e eu não tinha mais condições de lutar. Felizmente, o demônio também não podia.

Saito àquela altura já havia eliminado o Oni Kanryusai, e correu em meu auxílio. Ele estranhou o pedido para decepar meu braço direito, mas quando lhe expliquei que eu sentia que o congelamento se propagaria para o resto do meu corpo se eu não me livrasse do braço, que já estava completamente inútil, ele não relutou mais e atendeu meu pedido.

Alguns instantes depois, já havíamos espantado os demônios que restaram. Infelizmente não conseguimos eliminar os mais poderosos, que eram o Tengu e o Lobo da Neve, ainda assim conseguimos proteger o artefato enterrado no templo de Fushimi. O bastão de Muso Gonosuke, o único homem a derrotar Miyamoto Musashi, estava a salvo e em posse da Armada Milenar.

Apesar das baixas, reporto completo sucesso na missão. Alguns dias depois, o Shinsengumi seria derrotado na batalha de Toba-Fushimi. Saito, mesmo depois de duelo tão exauriente quanto o que passamos, liderou o Shinsengumi no campo de batalha. Aguardo notícias de sua sobrevivência. Mesmo derrotado, o Japão precisa de homens como ele. Sugiro que a Armada Milenar tente o alistamento dele uma vez mais, dada sua perícia e capacidade, e também seu grande senso de justiça."

 "Oni" - Toriyama Sekien - Ilustrações de 100 demônios 
do Passado e do Presente - 1779

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Segundo Registro: [Fushimi, 1868 - Batalha de Toba-Fushimi]

Por Hajime Saito

"Eu odiava aquela sensação de inutilidade. Estava a quilômetros do campo de batalha, e mesmo assim não podia me envolver. Homura Masato, um dos membros da Armada Milenar, divisão secreta do Shinsengumi, decidiu que seria vital minha presença próximo ao campo de batalha. Eu questionei o porque da necessidade de eu estar perto do campo de batalha, mas não no campo de batalha. Esse embate vai decidir o futuro do Japão, e uma derrota com certeza vai colocar nossa verdade em risco. Homura apenas riu e deu de ombros, balbuciou algo como a nossa derrota já estar definida, o que quase me fez começar uma briga com ele. Só não o ataquei pois logo em seguida ele disse que havia uma batalha muito mais importante, uma batalha pela humanidade como um todo, e que a terceira unidade do Shinsengumi, a minha unidade, era a mais indicada para proteger os inocentes.
Normalmente, um membro da Armada milenar não pode comentar com civis -ou o que eles chamam de civis, o que engloba qualquer um que não seja membro da Armada- os aspectos de seu trabalho. Homura era conhecido por sempre receber represálias dos superiores por não obedecer essa regra. Eu já sabia o que a Armada fazia, em que tipo de batalhas eles se envolviam, mas aquela para qual Homura havia me trazido, seria inacreditável.
Estávamos conversando durante a vigia no acampamento, eu consegui reparar que o quimono branco do Shinsengumi que Homura usava, havia sido lavado muitas vezes num curto período de tempo, e ainda assim havia pequenas manchas de sangue. Dava para perceber que o homem havia se envolvido em uma sequência de batalhas quase ininterruptas. 
Homura era uma pessoa simples, humilde, o que era surpreendente devido a sua linhagem, devido a espada que carregava, e devido a sua posição no Shinsengumi. Ainda me tratava como um superior, da mesma maneira que fazia quando ainda era um mero soldado na décima unidade, a unidade de Harada Sanosuke. Ele me contou que quando a humanidade se envolve em combates violentos e duradouros como a guerra civil que enfrentávamos, era a hora em que os demônios conseguiam inúmeras pontes de acesso para o plano dos humanos. Imagine viver num limbo, num lugar em que pensamentos não existem, em que a existência pode ser colocada em dúvida, e subitamente conseguir uma brecha para escapar, um caminho para um lugar melhor, onde todos os seus desejos reprimidos podem ser explorados. Por isso demônios eram tão perigosos, tão vis e doentios. 
Um soldado de minha unidade questionou Homura quanto as armas utilizadas. Sabia que a Armada havia apreendido alguns mosquetes, e até mesmo uma metralhadora Gatling, capaz de disparar 200 vezes por minuto, e indagava se essas armas não seriam eficazes num embate contra as criaturas de planos inferiores. Homura, mostrando-se muito mais paciente do que eu, explicou que esse tipo de arma não conseguia transmitir a alma de seu portador para o projétil, o que lhe tornava inútil. Não era como o arco e flecha em que havia o contato direto entre homem, arma, e seta, ou como a espada, que era o melhor condutor para a alma do caçador. Não sei porque ri no momento, acreditava piamente que a espada japonesa era a melhor do mundo justamente por ela conseguir transmitir a alma de seu usuário em cada golpe desferido. Talvez eu tenha rido por ainda achar estranho toda essa ideia de caçar demônios. Ou talvez eu tenha ficado nervoso, sabendo agora o motivo de ter sido escolhido para auxiliar a Armada Milenar. Minha alma estava em minha lâmina desde antes de entrar para o Shinsengumi, se a transmissão da alma no golpe era eficaz contra demônios, então eu não tinha nada com que me preocupar.
Nada, além de continuar vivo."


Kijinmaru - A lâmina de Hajime Saito
Kijinmaru significa "Lâmina do Oni", uma espécie de demônio

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Primeiro Registro: [Kyoto, 1864 - Incidente da Hospedaria Ikeda]

Por Homura Masato 

"Um silvo agoniante ecoa pelas ruas de Kyoto. A lua brilha forte no céu. Eu estou nervoso.
É apenas minha segunda semana como membro do Shinsengumi¹, mas graças a minha perícia com a espada, eu estou acompanhando o comandante, Kondo Isami, em uma missão de extrema importância.
Não posso dizer que estou de pleno acordo com os métodos do Shinsengumi . Era possível ouvir os gritos do homem capturado, Furutaka Shuntaro, durante toda a noite. Correm boatos de que o vice-comandante do Shinsengumi, o senhor Hijikata Toshizo, o torturou durante horas, até que ele revelou o local de encontro dos ativistas e dos samurais de Choushu. Não sei se devo confrontar meus superiores quanto aos seus métodos, estou certo de que eles tem em mente o melhor para meu país. Foi por isso que me juntei a eles em primeiro lugar. Ainda assim, fico bastante incomodado.
Perdoem-me se essa carta parece mais um relatório descoordenado, mas a noite do Incidente na hospedaria Ikeda nunca será esquecida.
Quando nos organizamos para a emboscada, nos dividimos em dois grupos. Duas frentes de ataque. Eu estava com o Capitão da Segunda Unidade do Shinsengumi, o senhor Nagakura Shinpachi, e sua equipe. Seríamos a segunda onda de ataque, e pegaríamos a rebarba do ataque do Senhor Kondo Isami. Quando a equipe do senhor Kondo atacou, eu senti algo passando por perto. O ar ficou estranhamente gelado, e ao me virar na direção que havia me incomodado, eu consegui ver uma silhueta correndo em direção à estrada.
Imaginando ser alguém que fugiu da hospedaria e temendo que essa pessoa pudesse por nossos planos em risco, eu corri atrás dele.
Minha espada já estava desembainhada quando eu finalmente o alcancei. Era rápida a criatura, e poderia facilmente ter me deixado para trás apenas correndo, pois não parecia mostrar sinais de cansaço mesmo depois de minha perseguição. Provavelmente havia percebido que apenas eu lhe seguia, e achou por bem me eliminar para poder continuar em seu caminho.
Nuvens cobriam a lua quando nos encaramos, e eu não consegui identificar de imediato o que eu enfrentava. Eu caí repentinamente com o que parecia ser um soco no estômago, e consegui me esquivar de um segundo ataque com um rolamento para o lado. Estávamos longe demais um do outro para eu ter sido atacado daquela maneira. Quando a lua torna a reinar absoluta nos céus, eu quase perco meu fôlego, não conseguia acreditar em meus olhos.
A criatura devia ter quase dois metros de altura,  sua pele parecia breu e refletia em partes a luz da lua, mostrando também que algo oscilava em sua composição. Sua pele não era firme, mais parecia com um amontoado de betume. Eu conseguia ver no chão parte daquela substância que cobria seu corpo, e o que mais me espantava é que essa substância estava se recolhendo para integrar novamente o corpo daquele monstro.
Ele tenta um novo golpe, vindo de cima. Seu braço se alonga, mostrando como ele havia me atingido da primeira vez. Novamente eu rolo para o lado, conseguindo uma brecha para avançar. Com espada em riste, eu arrisco uma estocada, atravessando o monstro com minha Kotetsu². Qual não é a minha surpresa, quando o monstro me joga para longe com o que parecem ser tentáculos saindo de seu peitoral, enquanto o breu devorava minha espada sem quaisquer resquícios de ter sentido o golpe.
Eu caio sobre um de meus braços, e o impacto faz com que eu o quebre. A criatura avança em minha direção e eu não sei o que posso fazer para detê-la. Mais um golpe me acerta, enquanto tentava me levantar, o que me arremessa com as costas contra uma ponte de madeira próxima. Eu olho para o lado e sorrio, estava salvo.
Quando a criatura se aproxima novamente, tentando o derradeiro golpe, eu alcanço uma lanterna no parapeito da ponte, usada para iluminar o caminho de viajantes, e em dois movimentos, eu ateio a criatura em chamas, o monstro de breu desfalece e some como se fosse uma mera lembrança. Minha Kotetsu vai ao chão poucos segundos depois, com a guarda e empunhadura completamente danificados pelo fogo, mas a lâmina ainda parecia perfeita. Nada menos do que se esperaria de uma espada de quase 200 anos.
Poucos momentos depois, sou abordado por homens do Shinsengumi vestindo um curioso uniforme branco com detalhes triangulares em preto nas mangas e na barra do quimono, diferente dos costumeiros trajes azuis com detalhes brancos. Eles dizem ser de uma divisão secreta do Shinsengumi, e que devido ao meu excelente desempenho do dia de hoje, eu estava sendo convocado à divisão dos matadores de demônios, a Armada Milenar. Foi a última vez em que eu fiquei surpreso com algo em minha vida."

¹Shinsengumi - O novo exército dos escolhidos. Era uma força policial que patrulhava as ruas de Kyoto durante o período da Revolução Meiji. Eles tomaram o lado do xogunato, lutando para manter o Japão de portas fechadas a estrangeiros. O incidente da hospedaria Ikeda é dito como tão importante que atrasou a vitória das forças leais ao imperador Meiji em um ano ou dois.
²Kotetsu - A espada Kotetsu era item de cobiça de diversos samurais. Nagasone Kotetsu foi um popular armeiro que viveu de 1597 à 1678 e forjou algo em torno de 30 espadas. Sua lâmina era conhecida por possuir força extraordinária e ser capaz de destruir até elmos.

Uniforme do Shinsengumi