segunda-feira, 25 de março de 2013

Lua do Caçador [Guerra do Paraguai - Março de 1870]



Era final de tarde na pequena vila de Comienzo, no distrito de Concépcion, uma cidade próxima à fronteira do Brasil, na margem esquerda do Rio Paraguai. O lugar estava desértico como era de costume naquele horário. Havia apenas algumas poucas pessoas na rua, conversando. Algumas crianças corriam descalças no chão de terra batida, fugindo dos gritos autoritários de suas mães. Subitamente, as poucas pessoas que se encontravam na rua naquele momento haviam parado por completo o que faziam. Sua atenção estava toda concentrada naquele estranho fardado que adentrava a vila a cavalo. Não era a barba espessa e o bigode que chamava tanta atenção. Tampouco era o sabre de um lado da cintura, ou os dois revólveres Colt Dragoon do outro lado que o destacava tanto para aquelas pessoas. O que realmente incomodava aquele povo era o brasão imperial de armas costurado em seu braço direito, indicando que aquele homem era um alto oficial do exército brasileiro.
Ignorando os olhares, o homem desce de seu cavalo, conduzindo-o até uma estrebaria, onde poderia amarrá-lo junto a um poste. Enquanto ele o fazia, um dos locais se aproxima. Sua expressão era de puro desagrado, enquanto sua mão apertava a empunhadura de sua pistola.
—Boa tarde. —Diz o oficial brasileiro, percebendo a aproximação sequer desviando o olhar do cavalo, que não parecia se incomodar em ser amarrado ao poste. O local se detém como se estivesse revendo a sua abordagem.
—Tarde...—ele diz, ainda muito incomodado. —Eu sou o xerife de Comienzo, o que você quer aqui?
—Uma cama, comida, e principalmente informação.
—Informação, é? —O xerife começa a puxar lentamente sua pistola do coldre, tentando não chamar a atenção daquele homem. Sabia o que ele queria, sabia o que devia fazer. Se tudo desse certo, Solano o recompensaria, talvez até com um cargo maior.
—Sim. Há alguns dias um dos Voluntários da Pátria passou por essa vila, e deveria se encontrar com o Coronel Joca Tavares. Tudo leva a crer que vocês o detiveram nesse vilarejo. —O xerife aproveita e saca sua arma. O estourar de um trovão ressoa por aquela vila, o cheiro de pólvora domina a área. Um surpreso homem da lei paraguaio agora estava caído no chão, com a mão no ombro baleado. Ainda de costas, o oficial brasileiro colocava sua Colt de volta ao coldre. Ele estala a língua, irritado com aquela situação. A reação do xerife à sua chegada indicava que ele provavelmente não teria tempo para descansar ou se alimentar direito depois que encontrasse o homem que procurava. O soldado brasileiro alcança o xerife, pegando-o pelo colar da camisa e diz irritado:
—Não tente isso novamente. Agora, me leve até Chico Diabo, por favor?
—C-Certo...certo... —O xerife choraminga, enquanto vai caminhando a um casebre ainda no começo da vila. Ao abrir a porta, revela seu escritório, com uma prisão adjacente. O brasileiro ao entrar percebe uma estranha lança escorada na parede. Ele empurra o xerife ao chão, enquanto caminha até a cela. Seu olhar cruza com o do soldado encarcerado, que abre um sorrisinho ao ver o oficial:
—Então, finalmente decidiu lutar, Hugo? —O homem encarcerado diz, com a voz carregada em escárnio.
—Mataram Angel, Francisco. —Hugo, o oficial brasileiro, dizia com pesar na voz.
—É, eu fiquei sabendo. Solano mandou executar o próprio irmão.
—Ele era nosso amigo, Francisco! —Hugo se exaltava. —Como pode ficar tão calmo?
—Que diabos eu posso fazer preso? —Francisco se levanta, cerrando os punhos. Ele e Hugo eram amigos de infância, porém Hugo era de uma família de grandes posses. Estudou nos melhores colégios, inclusive no colégio da Marinha do Rio de Janeiro, mas Hugo e Francisco sempre fizeram questão de não perder contato. Hugo havia conhecido Angel Benigno Lopez durante seu período no colégio da marinha, e logo os três se tornaram amigos inseparáveis. Isso até Angel ter que retornar ao Paraguai. Hugo posteriormente se formou na Escola Naval, e depois foi convocado para uma espécie de organização militar que respondia diretamente a Dom Pedro II, perdendo contato de vez com seu amigo. —Você ficou viajando a serviço do Pedrinho, enquanto eu estive na luta durante os últimos quatro anos! Espera eu sair daqui pra você ver se eu não te arrebento, seu arrogantezinho de merda!
Com um movimento, Hugo desembainha o sabre. Um arco prateado brilha por um segundo e no seguinte as barras da cela que prendia Francisco caem sem impor grande resistência:
—Mais respeito com o nosso Imperador. —Francisco estava sem palavras, o que Hugo mentalizava como algo inédito. Quando finalmente consegue fechar a boca, Francisco deixa sua cela, saltitante, e caminha até sua lança.
—Então, parece que você finalmente achou uma arma pra rivalizar minha Longino.—Chico diz, satisfeito.
—Depois te contarei os detalhes de minhas viagens, agora temos que nos apressar. —Hugo diz, novamente em seu estado sereno. —Se eles te prenderam, eles já devem saber de nosso plano.
—Na verdade, eles me prenderam porque eu deslizei aos lençóis da filha do xerife.
—Você o quê?!
—E também trapaceei no pôquer.
—Francisco!
—E aí eu tive que bater em alguns dos homens da vila.
—Pombas, Chico! Você não mudou nada!
—Você também não, engomadinho. —Francisco veste sua farda por completo, prendendo a lança às costas. —Não foi você quem falou que devíamos nos apressar?
Os dois caminham para a rua, apenas para se encontrarem cercados por vários dos homens locais. Armados de paus e pedras, nenhum deles portava arma de fogo, mas eram em número muito superior. Chico retira a lança das costas, empunhando-a diagonalmente, em uma postura que Hugo não reconhecia.
—Então, Hugo? Mostra pra mim o que essas suas pistolas bonitas aí podem fazer!
—Essas pessoas são inocentes em nossa guerra. —Hugo solta o sabre de sua cintura, sem retirá-lo da bainha. —Não quero matar ninguém que não mereça a morte, e gostaria que você tentasse se conter também, velho amigo.
—Então dá um tiro pro alto e afugenta todo mundo.
—Também faz muito tempo desde nossa última briga lado a lado, Chico. —Hugo sorri, postando-se em guarda.
—Agora sim você parece o Hugo!
Os dois avançam contra o grupo de homens. Hugo os derrubava com golpes pesados do sabre embainhado. Chico, atendendo ao pedido de seu amigo, não os atacava com a lâmina de sua lança, mas também não pegava leve. Dentes voavam, ossos quebravam, e em questão de segundos, os dois haviam nocauteado sozinhos doze homens.
Chico não demora muito e localiza o seu cavalo, logo se juntando a Hugo. Os dois já preparados estavam para deixar a vila para trás, quando percebem uma tempestade de poeira e areia se aproximando.
—O que é isso? —Pergunta Hugo, protegendo os olhos com o braço.
—Ei! —A essa altura, o barulho causado pela tempestade obriga a Francisco gritar para o amigo escutá-lo. —Sabe aquelas coisas todas que eu te falei que fiz aqui nessa vila e por isso eles me prenderam?
—Sim. O que tem?
—Então, eles até me perseguiram por causa delas, mas na verdade, eles só conseguiram me prender por causa desse bicho aí.
—Mas que diabos é isso?
—Curupira.
—Ah, você está brincando. —Hugo diz, irritado. A tempestade se interrompe, revelando um homem grande, de quase três metros, com longos cabelos vermelhos, caindo de forma caótica sobre o rosto daquela criatura. Se isso não fosse o suficiente para convencer Hugo de que estava diante de uma criatura sobrenatural, os pés virados para trás eram uma evidência irrefutável.
Ele saca o par de revólveres e antes que Chico pudesse protestar as Colt Dragoon já gritavam, disparando chumbo quente na direção da criatura. Onze disparos são feitos, todos acertando em cheio na cabeça, peitoral, e braços do monstro, mas todos eles parecem simplesmente retardar brevemente a criatura.
—Balas não adiantam, Hugo.—Chico diz, colocando-se a frente do amigo, com a lança em mãos. —O máximo que consegui foi feri-lo com a lança. —Dito isso, Hugo desembainha o sabre, para satisfação de seu amigo.
—Se é assim, então não vamos perder mais tempo, Chico!
Com um meneio de suas cabeças, como combinando gestualmente suas ações, ambos avançam na direção do Curupira, com suas armas em riste. A criatura, por sua vez, sorri ao erguer suas mãos. Sem dificuldade ele apara o sabre de Hugo, segurando-o abaixo de sua curvatura, próximo à guarda, de modo que não havia o corte necessário para feri-lo. Com a lança de Chico, ele apenas precisava evitar a ponta.
Valendo-se de sua força descomunal ele joga Hugo, ainda agarrado ao sabre, para cima de Chico, fazendo com que os dois tombassem no chão. Eles tentam se levantar o mais rápido possível, mesmo que deselegantemente, para não ficarem desguarnecidos contra o Curupira. Chico empurra Hugo para o lado, rolando na direção oposta e escapando por pouco de um pisoteio do monstro, que levanta muita poeira com o impacto e o peso de seu corpo.  Os dois aproveitam a aproximação da criatura e arriscam um novo ataque. O sabre desenha um arco no ar, atingindo as costelas do Curupira. A lança logo em seguida encontra o estômago desprotegido de seu adversário. Os dois comemoravam em pensamento o sucesso de seu ataque, mas logo percebem que a criatura mal havia se abalado. Mais uma vez eles são arremessados para longe, dessa vez sem conseguirem se agarrar a suas armas, que agora estavam nas mãos de seu adversário:
—É, Hugo. Acho que agora já era! —Chico diz, se levantando à medida que se recuperava do baque que sofrera. O Curupira se aproximava ameaçador, com lança em uma mão, e o sabre na outra.
—Não. —Hugo diz, sem realmente conseguir impor ânimo em sua voz. —Não podemos perder. —Os dois se levantam uma vez mais, erguendo os punhos. Os dois partem para o ataque, tendo em mente de que aquilo seria praticamente inútil. Porém, antes que sequer pudessem trocar golpes com o Curupira, o monstro é atingido nas costas por uma saraivada de flechas. A criatura sente o golpe, mais do que havia sentido a lança e o sabre, e quando volta sua atenção para quem lhe atacava, é varado por uma espada de duas mãos. O espadachim era um homem bem mais velho do que Hugo e Chico, e trajava farda militar semelhante a do lanceiro. Aquele era o Coronel dos Voluntários da Pátria, o senhor Joca Tavares.
Curupira se debate, grunhindo em dor enquanto tentava se livrar do coronel. Mais uma série de flechas o atinge com precisão, todas elas passando ao lado ou por cima de Joca. O espadachim retira a espada da barriga do e com um salto, desfere um golpe que separa a cabeça do monstro de seu corpo. Ele observa a criatura, enquanto limpa a lâmina de sua arma. Guardando a espada em suas costas, Tavares se dirige aos dois homens caídos, que finalmente recuperavam a lança e o sabre.
—Chegou em boa hora, Coronel! —Chico saúda o seu superior, com um sorriso no rosto. Tavares, por sua vez, cumprimenta seu subordinado com um soco no rosto, que o derruba uma vez mais. Chico já estava ficando saturado de cair ao chão. —Mas que...
—Você não é um idiota, Francisco! Pare de se comportar como tal! Quase arruinou nossos planos.
—Escute. —Hugo segura o braço de Joca, que parecia prestes a arriscar mais um soco. —Eu agradeço pelo resgate, mas não acha mais seguro sairmos logo daqui? Sempre haverá tempo para discutir, mas é melhor fazê-lo quando estivermos seguros. —Os dois trocam olhares furiosos, até que a tensão no braço do coronel se alivia e ele se dirige a um cavalo. Chico se levanta e busca os cavalos dele e de Hugo. Em pouco tempo os três já estavam montados e deixando a pequena vila de Comienzo para trás.

Após alguns minutos de cavalgada, o trio é recebido por outro dos Voluntários da Pátria. Hugo repara no arco em suas costas, o que denunciava que era ele quem estava dando apoio ao coronel. Encontrá-lo naquele ponto também indicava que sua maestria no manejo do arco fazia com que os disparos fossem fáceis, mesmo com tamanha distância o separando do campo de batalha. Pela primeira vez toda aquela situação o atinge mentalmente: o monstro derrotado, aquelas pessoas com quem cavalgava. O que diabos estava acontecendo?
Tinham feito duas paradas para se alimentarem e na segunda, como a noite já caía, decidiram levantar acampamento. Hugo era um tipo orgulhoso, e mais que isso, cético a todas aquelas coisas sobrenaturais. Fazia um esforço enorme para fazer aquela situação entrar em sua cabeça. Na hora da luta havia sido fácil, não havia outra opção. O coronel havia percebido o semblante compenetrado do jovem soldado, enquanto ele recarregava suas Colt Dragoon com munição. Tavares joga lenha para abastecer a fogueira que haviam acendido há pouco e senta-se ao lado do rapaz:
—Dificuldade de absorver a situação, garoto?
—Pode dizer que sim.
—É, eu vou te dizer: Estou nesse ramo há uns doze anos, e mesmo assim meu coração sempre parece pular uma batida toda vez que encontro um desses monstros.
—Aquilo...era mesmo um Curupira? O Chico...
—O Chico poderia estar apenas de zombaria, é isso que está pensando, não é?
—Bem, eu o conheço desde que éramos crianças.
—E é justamente por isso que não consegue acreditar que ele estaria zombando, embora essa resposta fosse bem menos complicada para você. —Hugo bufava, como se o fato do coronel estar certo o incomodasse mais ainda.
—Por que as balas não o afetavam? —O rapaz diz, contemplando suas armas, antes de guardá-las no coldre.
—Chico tinha essa mesma dúvida quando comecei a treiná-lo. Acontece que essas criaturas podem até ter corpo físico em nosso plano, mas a essência delas se encontra num plano de existência diferente. Existem algumas formas de atingir a criatura em dois planos diferentes, como encantos e feitiços específicos.
—Magia?—Hugo diz, no fôlego de uma risada contida.
—É, garoto. Magia é tão real quanto aquilo que chamamos de ciência, não duvide nunca disso. Aliás, é justamente esse o motivo para a Guerra não ter acabado ainda, e o motivo dos Voluntários da Pátria terem se formado.
—O que quer dizer com isso?
—Nós somos um ramo de uma organização que dedicou toda sua existência na caça de criaturas sobrenaturais que saíram da linha. Uma ordem de caçadores de demônios. —Joca estende seus braços, como se tentasse englobar os seis homens de seu grupamento. —A Armada Milenar.
—Eu não vou nem mais ficar fazendo cara de surpresa com essas informações. Por favor, prossiga.
—Francisco Solano López não é nenhum gênio militar, estratégico ou sequer político. Mas ele tem um trunfo que o tem mantido vivo desde que essa guerra começou. Um artefato conhecido como Pedra de Steuerung. Ela serve para controlar qualquer demônio que atravessa para o nosso plano. A pedra foi criada por um ocultista, um homem chamado John Dee, como medida de contenção e recuperada recentemente por um dos membros de nossa Armada, que Solano matou.
—Angel! —Hugo diz, exaltado. —Então ele era membro de sua ordem!
—Sim. Solano não tinha a menor ideia disso quando o eliminou. Ele buscava apenas o controle político do Paraguai, mas conseguiu algo tão bom quanto de presente.
—E quanto ao fato de não conseguirmos ferir os demônios com armas de fogo? —Hugo parecia muito mais interessado a partir daquele momento, como se finalmente tivesse parado de questionar aquela informação, e simplesmente a aceitasse.
—Isso se deve ao fato de não estarmos lutando contra o demônio em si, mas apenas sua manifestação física. Quando eliminamos uma dessas criaturas, apenas cortamos seu elo com o nosso mundo, como se destruíssemos sua casca. Entende?
—Hm. —O jovem soldado ainda não compreendia por inteiro, fazendo gesto para que Joca continuasse.
—É complicado de explicar, mas digamos que sua espada é um condutor muito melhor para sua vontade de destruir a criatura do que as balas de sua pistola. Isso porque o contato entre o projétil e seu espírito é bem pouco. Já sua arma está sempre contigo, toda vez em que a empunha, o nível de sua intimidade com ela aumenta, desse modo aumentando suas chances de causar dano a essas criaturas.
—É um tanto complexo, não acha?
—Até hoje ainda não tenho certeza se entendi direito como funciona. —Ele ri, repousando as mãos nas próprias pernas. —Apenas sei que funciona. Está ficando tarde, garoto. Vá dormir. —Joca se levanta, usando uma sacola de viagem como travesseiro e deitando ao relento, sobre uma esteira. —Amanhã planejaremos nosso ataque contra Solano. Precisarei de todos vocês em plena forma.

Os homens do grupamento já haviam todos se recolhido a seu sono profundo. O único que não conseguia descansar era justamente Hugo Ramos, o oficial da guarda imperial. Toda aquela conversa o havia deixado inquieto. Ele se levanta, abre um cantil e joga a água sobre seu rosto, como se quisesse lavar todas as dúvidas que sentia. Ele olha para seu cavalo, e o sabre pendurado junto à cela o convidava. Em poucos instantes, o rapaz já o tinha desembainhado, e arriscava alguns golpes diferentes. Quase meia hora passa, e a frustração do rapaz só aumenta. Não entendia os conceitos explicados pelo coronel, e acreditava que se não compreendesse, não poderia vingar a morte de Angel.
Ele se ajoelha, desamparado, e apoia-se no sabre. Uma mão logo repousa sobre seu ombro, fazendo com que se assustasse. Ele dá um passo à frente, virando-se imediatamente com o sabre em riste, apenas para ver o arqueiro do grupo o observando.
—Quer me matar do coração?
—De forma alguma, amigo. —O arqueiro diz, sorrindo. —Apenas achei estranho que não estivesse dormindo. —Os dois ficam em silêncio por um bom tempo. Hugo parecia envergonhado por ter sido pego de surpresa, enquanto que o arqueiro simplesmente parecia buscar uma resposta. —É difícil ser o novato, não é?
—Escuta...err...—Hugo se detém, ainda não sabia o nome do homem com quem conversava.
—Santiago. Luís Santiago. —Ele diz sorridente, estendendo sua mão.
—Então, Santiago. —Hugo o cumprimenta de forma apropriada, nunca esquecendo sua educação. —Eu simplesmente não entendo. Como você e o coronel conseguiram derrotar a criatura, enquanto eu e Chico tivemos um trabalho enorme para conseguir causar um mero arranhão?
—Sabe, eu acho que o coronel explica a ciência de nossa luta de forma um tanto equivocada.
—Ah, é?
—Sim. A questão de intimidade com a arma é realmente relevante, mas se fosse simplesmente isso, eu teria muita desvantagem, pois embora seja íntimo do arco, o que realmente atinge meu adversário é a flecha. Então, não pode ser simplesmente a intimidade, certo?
—Acho que sim.
—Então, o que você precisa saber é que seu espírito precisa estar coreografado com seu golpe. Cada ataque, cada estocada, tem que conter parte de sua alma na ponta da espada. Não pode ser efêmero. Não pode ser algo em vão.
—E como podes dizer que minha alma não está em cada golpe que desfiro? —Hugo diz quase num clamor. —Se tudo que minha alma mais quer é vingar a morte de meu amigo?
—Talvez o que seu amigo precise não é de vingança. Mas sim de justiça. —Santiago sorri, colocando as mãos nos bolsos de sua calça. —A vingança é poderosa, Hugo. E ela pode ter te conseguido esse sabre, e te mantido vivo até o momento. Mas a justiça é algo ainda mais poderoso. Se contar com esse poder, poderá se tornar mais útil à nossa Armada do que até mesmo o coronel. —Santiago parte para onde estava sua sacola, bocejando como que mostrasse sua intenção de encerrar o assunto e finalmente descansar. Hugo logo segue para sua esteira, carregando aquele novo ensinamento a seus sonhos. Logo ao lado, Chico ouvia tudo, assimilando o que pudesse para também poder vingar a morte de Angel.

Depois de um café da manhã improvisado, os homens cavalgam apressadamente. O silêncio que reinava parecia exibir o peso que aqueles homens carregavam em seu peito. Aquela guerra já havia durado demais. Seu país não era o único a sofrer os efeitos e mazelas daquela disputa estúpida. O Paraguai mesmo enfrentava dificuldades absurdas por conta da vaidade de um homem. Derrotar os exércitos de Solano não seria o suficiente enquanto ele tivesse sua legião demoníaca sob seu controle, e aqueles oito homens teriam que ser o suficiente para que acabar com as pretensões daquele maníaco.
A viagem dura manhã e tarde. A informação sobre a localização de Solano parecia correta. Ao cair da noite, eles conseguiam ver ao longe a fortaleza do déspota. Fortaleza entre aspas, pois consistia em muros de madeira improvisados, com apenas um portão frontal, e uma única torre de vigilância. Imaginavam quantas criaturas e monstros teriam que enfrentar até chegar ao verdadeiro adversário. Conseguiam destacar algumas figuras se movendo no perímetro da fortaleza, era a hora de colocar seu plano em prática:
—Santiago. —O arqueiro acena ao ouvir a voz do coronel Tavares lhe chamando. —Sabe o que fazer. —Joca via seu subordinado partir em disparate com mais três outros soldados. Eles seriam a primeira força de ataque. Um ataque frontal, quase suicida.
Quando chegam próximos da entrada, Santiago e seus companheiros conseguem ver que algumas das criaturas, dos mais sortidos demônios, haviam reparado em sua presença. Uma flecha corta o ar, caprichosa, e atinge um dos monstros da torre de vigilância em seu olho. A queda do demônio chama mais atenção para o grupo, que logo se vê perseguido pelos inimigos, reduzindo bastante a vigília da fortaleza. Santiago e seu grupo de apoio liderariam aqueles monstros para longe, servindo como distração.
—Agora! —Joca diz aos três homens que ficaram ao seu lado. Os cavalos relincham uma vez antes de partir para o ataque. Joca abria caminho com sua espada de duas mãos. A violência de cada golpe era ampliada pelo galope de seu cavalo. Hugo não conseguia esconder sua admiração, enquanto que Chico urrava com a adrenalina da batalha tomando seu corpo.
Em poucos instantes eles estavam dentro da fortaleza. Conseguiam ver alguns soldados, todos eles com aparência magra, decrépita. Um par de demônios, que devia servir de guarda pessoal de Solano, logo se posta em guarda com a invasão. No centro, um decorado trono servia de descanso para o único homem gordo que haviam visto no Paraguai desde que a guerra começara. Solano tinha aparência odiosa, com seu sorriso debochado e sua espada cravejada de diamantes em uma das mãos. Na outra mão, uma pedra negra do tamanho de um crânio humano chamava bastante atenção. A Pedra de Steuerung estranhamente brilhava com a luz da lua.
—Então vocês realmente chegaram até aqui? —Solano diz, com a voz embargada pela bebida. Não parecia sequer se lembrar de quantos demônios havia deixado na entrada para impedir o avanço dos brasileiros. —De que adianta a resistência de vocês, agora que tenho isso? —Ele mostra a pedra, desinteressado. —Esqueçam...não me interessa. —Com um gesto, ele comanda que os dois demônios ataquem o quarteto. Suas peles eram de um branco cadavérico, enquanto que seus olhos eram de um tom negro incólume. Joca e o soldado da Armada partem para enfrentar um dos demônios, enquanto Hugo e Chico cuidariam do outro. Os soldados de Solano, caso não estivessem claramente debilitados pela fome, talvez até ajudassem seu ditador. No estado em que se encontravam, porém, mal serviam como espectadores do confronto.
Joca lutava de forma elegante. Nenhum de seus movimentos era desnecessário, sendo calculados de forma fria, como se não quisesse desperdiçar energia. Seu ajudante, porém, não partilhava da mesma experiência, contando apenas com seu coronel, que chamava a atenção da criatura que enfrentavam sempre que percebia que seu subordinado poderia correr perigo. O coronel ainda não tivera uma clara oportunidade para seu ataque decisivo, e pensava consigo mesmo os quão mais fortes do que o Curupira aqueles demônios eram.
Hugo e Chico pareciam ter assimilado melhor a forma de combate da Armada Milenar. O monstro tinha dificuldades para acompanhar seus movimentos, e agora parecia que os golpes da dupla surtiam muito mais efeito. Num fulgor, Hugo havia desferido um corte circular na barriga do monstro, que ao se abaixar por sentir o golpe, tem o pescoço trespassado pela lança de Francisco. A busca por justiça realmente parecia tê-los deixado mais fortes. Pareciam mesmo estar mais em contato com suas armas.
O coronel tinha finalmente achado uma abertura. Usara seu subordinado como isca para que a criatura que enfrentava abrisse a guarda. Um corte perfeito, e o monstro havia sido partido ao meio, deixando um cheiro forte de enxofre correr pela fortaleza improvisada. Joca auxilia seu discípulo a se levantar, quando é surpreendido por uma lâmina varando sua barriga. Uma adaga. Solano torcia a arma, como se garantisse que o coronel Tavares não seria mais um empecilho. O jovem soldado, surpreso, tenta ajudar, mas atrapalhado por seu desespero, é um alvo fácil para a espada cravejada de diamantes do ditador paraguaio, que o decapita sem pesar.
—Malditos! —Solano diz, enfurecido. Ele embainha a adaga, e empunha a pedra novamente, como se convocasse todos os demônios sob o seu poder. Sem saber se Santiago havia conseguido lidar com os demônios que o perseguiam, ou mesmo a distância a que estariam agora, Hugo não poderia vacilar. Sua mão corre rápida até o coldre de uma de suas Colt, e, num instante, seis disparos são feitos, quatro deles atingindo a pedra, que vai em pedaços ao chão, e duas pegam na mão e no antebraço de Solano.
Quando o ditador brande sua espada, enfurecido e surpreso, Chico já estava perto o suficiente para estocá-lo com sua lança. O ditador engasga em suas lágrimas, indo ao chão pesadamente. Francisco remove sua lança do corpo do homem que havia causado problemas por quase meia década, sentindo-se revigorado, sentindo que finalmente poderiam trazer justiça a seu amigo Angel. Esse sentimento era compartilhado por Hugo, que caminhava até o coronel Tavares, desanimado por perder aquele valoroso companheiro de batalhas.
Ele se apoia no sabre, ajoelhando-se para fazer uma reza ao guerreiro que jazia tombado no campo de combate. Seus murmúrios e lamentos eram interrompidos por uma risadinha vinda de Chico. Um olhar mais atento, revela que o coronel respirava. Ainda estava vivo.
—Coronel! —Chico diz, ajoelhando-se ao lado de Hugo. —Nós vencemos, coronel!
—Vencemos...? —O homem, debilitado pelo seu ferimento diz. Ele olha ao lado e vê seu pupilo assassinado. Não sentia vontade de comemorar. Ele se levanta, com a ajuda dos amigos de infância, e os três caminham em direção a Solano.

—A vitória...—O tirano diz, sufocando em seu sangue. —A vitória deveria ser minha.
—Deveria. Poderia. Você só não contava com a Longino de Chico Diabo, Solano! —Francisco alcança sorridente a adaga na cintura do rechonchudo déspota, e a amarra em sua cintura. —Ei, nós temos as mesmas iniciais! —Ele diz, ao perceber as letras “FL” gravadas na bainha de ouro. —Acho que vou ficar com esse suvenir.
Nesse momento, Santiago e seu grupo chegavam à fortaleza. Carregavam alguns ferimentos, mas nada de muito grave.
—Coronel, temos que sair daqui! Agora!
—Do que está falando, Santiago?
—Os demônios parecem que voltaram ao seu próprio controle, e não estão nada satisfeitos com o que Solano fez! Eles estão vindo para cá, e eu que não quero estar no caminho deles!
Apressados, eles recolhem todos os pertences que poderiam, e logo montam em seus cavalos para partir. Hugo, por sua vez, se detém em frente daquela maldita pedra. Aquele artefato que havia custado a vida de Angel, a vida de um jovem soldado dos Voluntários da Pátria. Ele saca sua outra Colt Dragoon e, com mais seis tiros destrói por completo o que havia restado da Pedra de Steuerung.
Solano via os brasileiros partirem. Ainda estava vivo. Ainda não estava derrotado. Não importava se aqueles homens venceram aquela batalha, ele ainda tinha uma guerra para lutar. Assim pensava o ditador paraguaio, até que um mar de demônios, criaturas de toda sorte, começavam a invadir a fortaleza. Os gritos foram escutados mesmo pelos soldados brasileiros, que haviam se apressado para não serem pegos no caminho dos monstros. Solano havia encontrado o seu merecido destino, finalmente.

Após a derradeira batalha, os quatro heróis haviam conseguido se reunir apenas duas vezes. Uma delas fora semanas depois, na cerimônia de condecoração pela vitória e virtuosismo em combate. Joca, Chico e Santiago também aproveitaram essa cerimônia para receber Hugo na Armada Milenar como membro oficial, e não um mero apoio enviado por Dom Pedro II. Depois daquele dia, os quatro nunca mais lutariam lado a lado ao mesmo tempo, mas os quatro anjos da Armada Milenar continuariam sendo lendas por mérito próprio.
A segunda vez em que se encontraram fora no casamento de José Francisco Lacerda, vulgo Chico Diabo. Dos quatro anjos, que receberam esse nome em homenagem ao amigo Angel, apenas três estavam operantes. Santiago havia se aposentado dos serviços da Armada para viver uma vida tranquila no campo, nas terras que haviam sido dadas como prêmio por seus serviços à pátria. Hugo continuava na guarda imperial, sendo agora o encarregado por assuntos de ordem “extraordinária”, outra palavra para “sobrenatural”. Joca dava prosseguimento ao treinamento de Chico, criando no rapaz um sucessor mais do que digno para no futuro ocupar sua função.  
Hugo e Chico continuaram mantendo contato por carta, e ocasionalmente lutaram lado a lado, como veteranos da Armada Milenar, até o dia em que morreram. Aqueles que os acompanharam no campo de batalha, sempre irão lembrar a busca implacável dos dois por justiça. 


Coronel Joca Tavares (terceiro sentado, da esquerda para a direita) e seus auxiliares imediatos, incluíndo José Francisco Lacerda, mais conhecido como Chico Diabo (terceiro em pé, da esquerda para direita).
Foto de 1870


Um comentário:

  1. Ola, gostaria de trocar informações sobre a origem dos dados históricos, dado que descendo deles.

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