Era
final de tarde na pequena vila de Comienzo, no distrito de Concépcion, uma cidade próxima à fronteira do Brasil, na margem
esquerda do Rio Paraguai. O lugar estava desértico como era de costume naquele
horário. Havia apenas algumas poucas pessoas na rua, conversando. Algumas
crianças corriam descalças no chão de terra batida, fugindo dos gritos
autoritários de suas mães. Subitamente, as poucas pessoas que se encontravam na
rua naquele momento haviam parado por completo o que faziam. Sua atenção estava
toda concentrada naquele estranho fardado que adentrava a vila a cavalo. Não
era a barba espessa e o bigode que chamava tanta atenção. Tampouco era o sabre
de um lado da cintura, ou os dois revólveres Colt Dragoon do outro lado que o destacava tanto para aquelas
pessoas. O que realmente incomodava aquele povo era o brasão imperial de armas
costurado em seu braço direito, indicando que aquele homem era um alto oficial
do exército brasileiro.
Ignorando
os olhares, o homem desce de seu cavalo, conduzindo-o até uma estrebaria, onde
poderia amarrá-lo junto a um poste. Enquanto ele o fazia, um dos locais se
aproxima. Sua expressão era de puro desagrado, enquanto sua mão apertava a
empunhadura de sua pistola.
—Boa
tarde. —Diz o oficial brasileiro, percebendo a aproximação sequer desviando o
olhar do cavalo, que não parecia se incomodar em ser amarrado ao poste. O local
se detém como se estivesse revendo a sua abordagem.
—Tarde...—ele
diz, ainda muito incomodado. —Eu sou o xerife de Comienzo, o que você quer aqui?
—Uma
cama, comida, e principalmente informação.
—Informação,
é? —O xerife começa a puxar lentamente sua pistola do coldre, tentando não
chamar a atenção daquele homem. Sabia o que ele queria, sabia o que devia
fazer. Se tudo desse certo, Solano o recompensaria, talvez até com um cargo
maior.
—Sim.
Há alguns dias um dos Voluntários da Pátria passou por essa vila, e deveria se
encontrar com o Coronel Joca Tavares. Tudo leva a crer que vocês o detiveram
nesse vilarejo. —O xerife aproveita e saca sua arma. O estourar de um trovão
ressoa por aquela vila, o cheiro de pólvora domina a área. Um surpreso homem da
lei paraguaio agora estava caído no chão, com a mão no ombro baleado. Ainda de
costas, o oficial brasileiro colocava sua Colt
de volta ao coldre. Ele estala a língua, irritado com aquela situação. A
reação do xerife à sua chegada indicava que ele provavelmente não teria tempo
para descansar ou se alimentar direito depois que encontrasse o homem que
procurava. O soldado brasileiro alcança o xerife, pegando-o pelo colar da
camisa e diz irritado:
—Não
tente isso novamente. Agora, me leve até Chico Diabo, por favor?
—C-Certo...certo...
—O xerife choraminga, enquanto vai caminhando a um casebre ainda no começo da
vila. Ao abrir a porta, revela seu escritório, com uma prisão adjacente. O
brasileiro ao entrar percebe uma estranha lança escorada na parede. Ele empurra
o xerife ao chão, enquanto caminha até a cela. Seu olhar cruza com o do soldado
encarcerado, que abre um sorrisinho ao ver o oficial:
—Então,
finalmente decidiu lutar, Hugo? —O homem encarcerado diz, com a voz carregada
em escárnio.
—Mataram
Angel, Francisco. —Hugo, o oficial brasileiro, dizia com pesar na voz.
—É,
eu fiquei sabendo. Solano mandou executar o próprio irmão.
—Ele
era nosso amigo, Francisco! —Hugo se exaltava. —Como pode ficar tão calmo?
—Que
diabos eu posso fazer preso? —Francisco se levanta, cerrando os punhos. Ele e
Hugo eram amigos de infância, porém Hugo era de uma família de grandes posses.
Estudou nos melhores colégios, inclusive no colégio da Marinha do Rio de
Janeiro, mas Hugo e Francisco sempre fizeram questão de não perder contato.
Hugo havia conhecido Angel Benigno Lopez durante seu período no colégio da
marinha, e logo os três se tornaram amigos inseparáveis. Isso até Angel ter que
retornar ao Paraguai. Hugo posteriormente se formou na Escola Naval, e depois
foi convocado para uma espécie de organização militar que respondia diretamente
a Dom Pedro II, perdendo contato de vez com seu amigo. —Você ficou viajando a
serviço do Pedrinho, enquanto eu estive na luta durante os últimos quatro anos!
Espera eu sair daqui pra você ver se eu não te arrebento, seu arrogantezinho de
merda!
Com
um movimento, Hugo desembainha o sabre. Um arco prateado brilha por um segundo
e no seguinte as barras da cela que prendia Francisco caem sem impor grande
resistência:
—Mais
respeito com o nosso Imperador. —Francisco estava sem palavras, o que Hugo
mentalizava como algo inédito. Quando finalmente consegue fechar a boca,
Francisco deixa sua cela, saltitante, e caminha até sua lança.
—Então,
parece que você finalmente achou uma arma pra rivalizar minha Longino.—Chico diz, satisfeito.
—Depois
te contarei os detalhes de minhas viagens, agora temos que nos apressar. —Hugo
diz, novamente em seu estado sereno. —Se eles te prenderam, eles já devem saber
de nosso plano.
—Na
verdade, eles me prenderam porque eu deslizei aos lençóis da filha do xerife.
—Você
o quê?!
—E
também trapaceei no pôquer.
—Francisco!
—E
aí eu tive que bater em alguns dos homens da vila.
—Pombas,
Chico! Você não mudou nada!
—Você
também não, engomadinho. —Francisco veste sua farda por completo, prendendo a
lança às costas. —Não foi você quem falou que devíamos nos apressar?
Os
dois caminham para a rua, apenas para se encontrarem cercados por vários dos
homens locais. Armados de paus e pedras, nenhum deles portava arma de fogo, mas
eram em número muito superior. Chico retira a lança das costas, empunhando-a
diagonalmente, em uma postura que Hugo não reconhecia.
—Então,
Hugo? Mostra pra mim o que essas suas pistolas bonitas aí podem fazer!
—Essas
pessoas são inocentes em nossa guerra. —Hugo solta o sabre de sua cintura, sem
retirá-lo da bainha. —Não quero matar ninguém que não mereça a morte, e
gostaria que você tentasse se conter também, velho amigo.
—Então
dá um tiro pro alto e afugenta todo mundo.
—Também
faz muito tempo desde nossa última briga lado a lado, Chico. —Hugo sorri,
postando-se em guarda.
—Agora
sim você parece o Hugo!
Os
dois avançam contra o grupo de homens. Hugo os derrubava com golpes pesados do
sabre embainhado. Chico, atendendo ao pedido de seu amigo, não os atacava com a
lâmina de sua lança, mas também não pegava leve. Dentes voavam, ossos
quebravam, e em questão de segundos, os dois haviam nocauteado sozinhos doze
homens.
Chico
não demora muito e localiza o seu cavalo, logo se juntando a Hugo. Os dois já
preparados estavam para deixar a vila para trás, quando percebem uma tempestade
de poeira e areia se aproximando.
—O
que é isso? —Pergunta Hugo, protegendo os olhos com o braço.
—Ei!
—A essa altura, o barulho causado pela tempestade obriga a Francisco gritar
para o amigo escutá-lo. —Sabe aquelas coisas todas que eu te falei que fiz aqui
nessa vila e por isso eles me prenderam?
—Sim.
O que tem?
—Então,
eles até me perseguiram por causa delas, mas na verdade, eles só conseguiram me
prender por causa desse bicho aí.
—Mas
que diabos é isso?
—Curupira.
—Ah,
você está brincando. —Hugo diz, irritado. A tempestade se interrompe, revelando
um homem grande, de quase três metros, com longos cabelos vermelhos, caindo de
forma caótica sobre o rosto daquela criatura. Se isso não fosse o suficiente
para convencer Hugo de que estava diante de uma criatura sobrenatural, os pés
virados para trás eram uma evidência irrefutável.
Ele
saca o par de revólveres e antes que Chico pudesse protestar as Colt Dragoon já gritavam, disparando
chumbo quente na direção da criatura. Onze disparos são feitos, todos acertando
em cheio na cabeça, peitoral, e braços do monstro, mas todos eles parecem simplesmente
retardar brevemente a criatura.
—Balas
não adiantam, Hugo.—Chico diz, colocando-se a frente do amigo, com a lança em
mãos. —O máximo que consegui foi feri-lo com a lança. —Dito isso, Hugo
desembainha o sabre, para satisfação de seu amigo.
—Se
é assim, então não vamos perder mais tempo, Chico!
Com
um meneio de suas cabeças, como combinando gestualmente suas ações, ambos
avançam na direção do Curupira, com suas armas em riste. A criatura, por sua
vez, sorri ao erguer suas mãos. Sem dificuldade ele apara o sabre de Hugo,
segurando-o abaixo de sua curvatura, próximo à guarda, de modo que não havia o
corte necessário para feri-lo. Com a lança de Chico, ele apenas precisava
evitar a ponta.
Valendo-se
de sua força descomunal ele joga Hugo, ainda agarrado ao sabre, para cima de
Chico, fazendo com que os dois tombassem no chão. Eles tentam se levantar o
mais rápido possível, mesmo que deselegantemente, para não ficarem
desguarnecidos contra o Curupira. Chico empurra Hugo para o lado, rolando na
direção oposta e escapando por pouco de um pisoteio do monstro, que levanta
muita poeira com o impacto e o peso de seu corpo. Os dois aproveitam a aproximação da criatura e
arriscam um novo ataque. O sabre desenha um arco no ar, atingindo as costelas
do Curupira. A lança logo em seguida encontra o estômago desprotegido de seu
adversário. Os dois comemoravam em pensamento o sucesso de seu ataque, mas logo
percebem que a criatura mal havia se abalado. Mais uma vez eles são
arremessados para longe, dessa vez sem conseguirem se agarrar a suas armas, que
agora estavam nas mãos de seu adversário:
—É,
Hugo. Acho que agora já era! —Chico diz, se levantando à medida que se
recuperava do baque que sofrera. O Curupira se aproximava ameaçador, com lança
em uma mão, e o sabre na outra.
—Não.
—Hugo diz, sem realmente conseguir impor ânimo em sua voz. —Não podemos perder.
—Os dois se levantam uma vez mais, erguendo os punhos. Os dois partem para o
ataque, tendo em mente de que aquilo seria praticamente inútil. Porém, antes
que sequer pudessem trocar golpes com o Curupira, o monstro é atingido nas
costas por uma saraivada de flechas. A criatura sente o golpe, mais do que
havia sentido a lança e o sabre, e quando volta sua atenção para quem lhe
atacava, é varado por uma espada de duas mãos. O espadachim era um homem bem
mais velho do que Hugo e Chico, e trajava farda militar semelhante a do
lanceiro. Aquele era o Coronel dos Voluntários da Pátria, o senhor Joca
Tavares.
Curupira
se debate, grunhindo em dor enquanto tentava se livrar do coronel. Mais uma
série de flechas o atinge com precisão, todas elas passando ao lado ou por cima
de Joca. O espadachim retira a espada da barriga do e com um salto, desfere um
golpe que separa a cabeça do monstro de seu corpo. Ele observa a criatura,
enquanto limpa a lâmina de sua arma. Guardando a espada em suas costas, Tavares
se dirige aos dois homens caídos, que finalmente recuperavam a lança e o sabre.
—Chegou
em boa hora, Coronel! —Chico saúda o seu superior, com um sorriso no rosto.
Tavares, por sua vez, cumprimenta seu subordinado com um soco no rosto, que o
derruba uma vez mais. Chico já estava ficando saturado de cair ao chão. —Mas
que...
—Você
não é um idiota, Francisco! Pare de se comportar como tal! Quase arruinou
nossos planos.
—Escute.
—Hugo segura o braço de Joca, que parecia prestes a arriscar mais um soco. —Eu
agradeço pelo resgate, mas não acha mais seguro sairmos logo daqui? Sempre haverá
tempo para discutir, mas é melhor fazê-lo quando estivermos seguros. —Os dois
trocam olhares furiosos, até que a tensão no braço do coronel se alivia e ele
se dirige a um cavalo. Chico se levanta e busca os cavalos dele e de Hugo. Em
pouco tempo os três já estavam montados e deixando a pequena vila de Comienzo para trás.
Após
alguns minutos de cavalgada, o trio é recebido por outro dos Voluntários da
Pátria. Hugo repara no arco em suas costas, o que denunciava que era ele quem
estava dando apoio ao coronel. Encontrá-lo naquele ponto também indicava que sua
maestria no manejo do arco fazia com que os disparos fossem fáceis, mesmo com
tamanha distância o separando do campo de batalha. Pela primeira vez toda
aquela situação o atinge mentalmente: o monstro derrotado, aquelas pessoas com
quem cavalgava. O que diabos estava acontecendo?
Tinham
feito duas paradas para se alimentarem e na segunda, como a noite já caía,
decidiram levantar acampamento. Hugo era um tipo orgulhoso, e mais que isso,
cético a todas aquelas coisas sobrenaturais. Fazia um esforço enorme para fazer
aquela situação entrar em sua cabeça. Na hora da luta havia sido fácil, não
havia outra opção. O coronel havia percebido o semblante compenetrado do jovem
soldado, enquanto ele recarregava suas Colt
Dragoon com munição. Tavares joga lenha para abastecer a fogueira que
haviam acendido há pouco e senta-se ao lado do rapaz:
—Dificuldade
de absorver a situação, garoto?
—Pode
dizer que sim.
—É,
eu vou te dizer: Estou nesse ramo há uns doze anos, e mesmo assim meu coração
sempre parece pular uma batida toda vez que encontro um desses monstros.
—Aquilo...era
mesmo um Curupira? O Chico...
—O
Chico poderia estar apenas de zombaria, é isso que está pensando, não é?
—Bem,
eu o conheço desde que éramos crianças.
—E
é justamente por isso que não consegue acreditar que ele estaria zombando,
embora essa resposta fosse bem menos complicada para você. —Hugo bufava, como
se o fato do coronel estar certo o incomodasse mais ainda.
—Por
que as balas não o afetavam? —O rapaz diz, contemplando suas armas, antes de
guardá-las no coldre.
—Chico
tinha essa mesma dúvida quando comecei a treiná-lo. Acontece que essas
criaturas podem até ter corpo físico em nosso plano, mas a essência delas se
encontra num plano de existência diferente. Existem algumas formas de atingir a
criatura em dois planos diferentes, como encantos e feitiços específicos.
—Magia?—Hugo
diz, no fôlego de uma risada contida.
—É,
garoto. Magia é tão real quanto aquilo que chamamos de ciência, não duvide
nunca disso. Aliás, é justamente esse o motivo para a Guerra não ter acabado
ainda, e o motivo dos Voluntários da Pátria terem se formado.
—O
que quer dizer com isso?
—Nós
somos um ramo de uma organização que dedicou toda sua existência na caça de
criaturas sobrenaturais que saíram da linha. Uma ordem de caçadores de
demônios. —Joca estende seus braços, como se tentasse englobar os seis homens
de seu grupamento. —A Armada Milenar.
—Eu
não vou nem mais ficar fazendo cara de surpresa com essas informações. Por
favor, prossiga.
—Francisco
Solano López não é nenhum gênio militar, estratégico ou sequer político. Mas
ele tem um trunfo que o tem mantido vivo desde que essa guerra começou. Um
artefato conhecido como Pedra de Steuerung. Ela serve para controlar qualquer
demônio que atravessa para o nosso plano. A pedra foi criada por um ocultista,
um homem chamado John Dee, como medida de contenção e recuperada recentemente
por um dos membros de nossa Armada, que Solano matou.
—Angel!
—Hugo diz, exaltado. —Então ele era membro de sua ordem!
—Sim.
Solano não tinha a menor ideia disso quando o eliminou. Ele buscava apenas o
controle político do Paraguai, mas conseguiu algo tão bom quanto de presente.
—E
quanto ao fato de não conseguirmos ferir os demônios com armas de fogo? —Hugo
parecia muito mais interessado a partir daquele momento, como se finalmente
tivesse parado de questionar aquela informação, e simplesmente a aceitasse.
—Isso
se deve ao fato de não estarmos lutando contra o demônio em si, mas apenas sua
manifestação física. Quando eliminamos uma dessas criaturas, apenas cortamos
seu elo com o nosso mundo, como se destruíssemos sua casca. Entende?
—Hm.
—O jovem soldado ainda não compreendia por inteiro, fazendo gesto para que Joca
continuasse.
—É
complicado de explicar, mas digamos que sua espada é um condutor muito melhor
para sua vontade de destruir a criatura do que as balas de sua pistola. Isso
porque o contato entre o projétil e seu espírito é bem pouco. Já sua arma está
sempre contigo, toda vez em que a empunha, o nível de sua intimidade com ela
aumenta, desse modo aumentando suas chances de causar dano a essas criaturas.
—É
um tanto complexo, não acha?
—Até
hoje ainda não tenho certeza se entendi direito como funciona. —Ele ri,
repousando as mãos nas próprias pernas. —Apenas sei que funciona. Está ficando
tarde, garoto. Vá dormir. —Joca se levanta, usando uma sacola de viagem como
travesseiro e deitando ao relento, sobre uma esteira. —Amanhã planejaremos
nosso ataque contra Solano. Precisarei de todos vocês em plena forma.
Os
homens do grupamento já haviam todos se recolhido a seu sono profundo. O único
que não conseguia descansar era justamente Hugo Ramos, o oficial da guarda
imperial. Toda aquela conversa o havia deixado inquieto. Ele se levanta, abre
um cantil e joga a água sobre seu rosto, como se quisesse lavar todas as
dúvidas que sentia. Ele olha para seu cavalo, e o sabre pendurado junto à cela
o convidava. Em poucos instantes, o rapaz já o tinha desembainhado, e arriscava
alguns golpes diferentes. Quase meia hora passa, e a frustração do rapaz só
aumenta. Não entendia os conceitos explicados pelo coronel, e acreditava que se
não compreendesse, não poderia vingar a morte de Angel.
Ele
se ajoelha, desamparado, e apoia-se no sabre. Uma mão logo repousa sobre seu
ombro, fazendo com que se assustasse. Ele dá um passo à frente, virando-se
imediatamente com o sabre em riste, apenas para ver o arqueiro do grupo o
observando.
—Quer
me matar do coração?
—De
forma alguma, amigo. —O arqueiro diz, sorrindo. —Apenas achei estranho que não
estivesse dormindo. —Os dois ficam em silêncio por um bom tempo. Hugo parecia
envergonhado por ter sido pego de surpresa, enquanto que o arqueiro
simplesmente parecia buscar uma resposta. —É difícil ser o novato, não é?
—Escuta...err...—Hugo
se detém, ainda não sabia o nome do homem com quem conversava.
—Santiago.
Luís Santiago. —Ele diz sorridente, estendendo sua mão.
—Então,
Santiago. —Hugo o cumprimenta de forma apropriada, nunca esquecendo sua
educação. —Eu simplesmente não entendo. Como você e o coronel conseguiram
derrotar a criatura, enquanto eu e Chico tivemos um trabalho enorme para conseguir
causar um mero arranhão?
—Sabe,
eu acho que o coronel explica a ciência de nossa luta de forma um tanto
equivocada.
—Ah,
é?
—Sim.
A questão de intimidade com a arma é realmente relevante, mas se fosse
simplesmente isso, eu teria muita desvantagem, pois embora seja íntimo do arco,
o que realmente atinge meu adversário é a flecha. Então, não pode ser
simplesmente a intimidade, certo?
—Acho
que sim.
—Então,
o que você precisa saber é que seu espírito precisa estar coreografado com seu
golpe. Cada ataque, cada estocada, tem que conter parte de sua alma na ponta da
espada. Não pode ser efêmero. Não pode ser algo em vão.
—E
como podes dizer que minha alma não está em cada golpe que desfiro? —Hugo diz
quase num clamor. —Se tudo que minha alma mais quer é vingar a morte de meu
amigo?
—Talvez
o que seu amigo precise não é de vingança. Mas sim de justiça. —Santiago sorri,
colocando as mãos nos bolsos de sua calça. —A vingança é poderosa, Hugo. E ela
pode ter te conseguido esse sabre, e te mantido vivo até o momento. Mas a
justiça é algo ainda mais poderoso. Se contar com esse poder, poderá se tornar
mais útil à nossa Armada do que até mesmo o coronel. —Santiago parte para onde
estava sua sacola, bocejando como que mostrasse sua intenção de encerrar o
assunto e finalmente descansar. Hugo logo segue para sua esteira, carregando
aquele novo ensinamento a seus sonhos. Logo ao lado, Chico ouvia tudo,
assimilando o que pudesse para também poder vingar a morte de Angel.
Depois
de um café da manhã improvisado, os homens cavalgam apressadamente. O silêncio
que reinava parecia exibir o peso que aqueles homens carregavam em seu peito.
Aquela guerra já havia durado demais. Seu país não era o único a sofrer os
efeitos e mazelas daquela disputa estúpida. O Paraguai mesmo enfrentava
dificuldades absurdas por conta da vaidade de um homem. Derrotar os exércitos
de Solano não seria o suficiente enquanto ele tivesse sua legião demoníaca sob
seu controle, e aqueles oito homens teriam que ser o suficiente para que acabar
com as pretensões daquele maníaco.
A
viagem dura manhã e tarde. A informação sobre a localização de Solano parecia
correta. Ao cair da noite, eles conseguiam ver ao longe a fortaleza do déspota.
Fortaleza entre aspas, pois consistia em muros de madeira improvisados, com
apenas um portão frontal, e uma única torre de vigilância. Imaginavam quantas
criaturas e monstros teriam que enfrentar até chegar ao verdadeiro adversário.
Conseguiam destacar algumas figuras se movendo no perímetro da fortaleza, era a
hora de colocar seu plano em prática:
—Santiago.
—O arqueiro acena ao ouvir a voz do coronel Tavares lhe chamando. —Sabe o que
fazer. —Joca via seu subordinado partir em disparate com mais três outros
soldados. Eles seriam a primeira força de ataque. Um ataque frontal, quase
suicida.
Quando
chegam próximos da entrada, Santiago e seus companheiros conseguem ver que
algumas das criaturas, dos mais sortidos demônios, haviam reparado em sua
presença. Uma flecha corta o ar, caprichosa, e atinge um dos monstros da torre
de vigilância em seu olho. A queda do demônio chama mais atenção para o grupo,
que logo se vê perseguido pelos inimigos, reduzindo bastante a vigília da
fortaleza. Santiago e seu grupo de apoio liderariam aqueles monstros para
longe, servindo como distração.
—Agora!
—Joca diz aos três homens que ficaram ao seu lado. Os cavalos relincham uma vez
antes de partir para o ataque. Joca abria caminho com sua espada de duas mãos.
A violência de cada golpe era ampliada pelo galope de seu cavalo. Hugo não
conseguia esconder sua admiração, enquanto que Chico urrava com a adrenalina da
batalha tomando seu corpo.
Em
poucos instantes eles estavam dentro da fortaleza. Conseguiam ver alguns
soldados, todos eles com aparência magra, decrépita. Um par de demônios, que
devia servir de guarda pessoal de Solano, logo se posta em guarda com a
invasão. No centro, um decorado trono servia de descanso para o único homem
gordo que haviam visto no Paraguai desde que a guerra começara. Solano tinha
aparência odiosa, com seu sorriso debochado e sua espada cravejada de diamantes
em uma das mãos. Na outra mão, uma pedra negra do tamanho de um crânio humano
chamava bastante atenção. A Pedra de Steuerung estranhamente brilhava com a luz
da lua.
—Então
vocês realmente chegaram até aqui? —Solano diz, com a voz embargada pela
bebida. Não parecia sequer se lembrar de quantos demônios havia deixado na
entrada para impedir o avanço dos brasileiros. —De que adianta a resistência de
vocês, agora que tenho isso? —Ele mostra a pedra, desinteressado. —Esqueçam...não
me interessa. —Com um gesto, ele comanda que os dois demônios ataquem o
quarteto. Suas peles eram de um branco cadavérico, enquanto que seus olhos eram
de um tom negro incólume. Joca e o soldado da Armada partem para enfrentar um
dos demônios, enquanto Hugo e Chico cuidariam do outro. Os soldados de Solano,
caso não estivessem claramente debilitados pela fome, talvez até ajudassem seu
ditador. No estado em que se encontravam, porém, mal serviam como espectadores
do confronto.
Joca
lutava de forma elegante. Nenhum de seus movimentos era desnecessário, sendo
calculados de forma fria, como se não quisesse desperdiçar energia. Seu
ajudante, porém, não partilhava da mesma experiência, contando apenas com seu
coronel, que chamava a atenção da criatura que enfrentavam sempre que percebia
que seu subordinado poderia correr perigo. O coronel ainda não tivera uma clara
oportunidade para seu ataque decisivo, e pensava consigo mesmo os quão mais
fortes do que o Curupira aqueles demônios eram.
Hugo
e Chico pareciam ter assimilado melhor a forma de combate da Armada Milenar. O
monstro tinha dificuldades para acompanhar seus movimentos, e agora parecia que
os golpes da dupla surtiam muito mais efeito. Num fulgor, Hugo havia desferido
um corte circular na barriga do monstro, que ao se abaixar por sentir o golpe,
tem o pescoço trespassado pela lança de Francisco. A busca por justiça
realmente parecia tê-los deixado mais fortes. Pareciam mesmo estar mais em
contato com suas armas.
O
coronel tinha finalmente achado uma abertura. Usara seu subordinado como isca
para que a criatura que enfrentava abrisse a guarda. Um corte perfeito, e o
monstro havia sido partido ao meio, deixando um cheiro forte de enxofre correr
pela fortaleza improvisada. Joca auxilia seu discípulo a se levantar, quando é
surpreendido por uma lâmina varando sua barriga. Uma adaga. Solano torcia a
arma, como se garantisse que o coronel Tavares não seria mais um empecilho. O
jovem soldado, surpreso, tenta ajudar, mas atrapalhado por seu desespero, é um
alvo fácil para a espada cravejada de diamantes do ditador paraguaio, que o
decapita sem pesar.
—Malditos!
—Solano diz, enfurecido. Ele embainha a adaga, e empunha a pedra novamente,
como se convocasse todos os demônios sob o seu poder. Sem saber se Santiago havia
conseguido lidar com os demônios que o perseguiam, ou mesmo a distância a que
estariam agora, Hugo não poderia vacilar. Sua mão corre rápida até o coldre de
uma de suas Colt, e, num instante,
seis disparos são feitos, quatro deles atingindo a pedra, que vai em pedaços ao
chão, e duas pegam na mão e no antebraço de Solano.
Quando
o ditador brande sua espada, enfurecido e surpreso, Chico já estava perto o
suficiente para estocá-lo com sua lança. O ditador engasga em suas lágrimas,
indo ao chão pesadamente. Francisco remove sua lança do corpo do homem que
havia causado problemas por quase meia década, sentindo-se revigorado, sentindo
que finalmente poderiam trazer justiça a seu amigo Angel. Esse sentimento era
compartilhado por Hugo, que caminhava até o coronel Tavares, desanimado por
perder aquele valoroso companheiro de batalhas.
Ele
se apoia no sabre, ajoelhando-se para fazer uma reza ao guerreiro que jazia
tombado no campo de combate. Seus murmúrios e lamentos eram interrompidos por
uma risadinha vinda de Chico. Um olhar mais atento, revela que o coronel
respirava. Ainda estava vivo.
—Coronel!
—Chico diz, ajoelhando-se ao lado de Hugo. —Nós vencemos, coronel!
—Vencemos...?
—O homem, debilitado pelo seu ferimento diz. Ele olha ao lado e vê seu pupilo assassinado.
Não sentia vontade de comemorar. Ele se levanta, com a ajuda dos amigos de
infância, e os três caminham em direção a Solano.
—A
vitória...—O tirano diz, sufocando em seu sangue. —A vitória deveria ser minha.
—Deveria.
Poderia. Você só não contava com a Longino
de Chico Diabo, Solano! —Francisco alcança sorridente a adaga na cintura do
rechonchudo déspota, e a amarra em sua cintura. —Ei, nós temos as mesmas
iniciais! —Ele diz, ao perceber as letras “FL” gravadas na bainha de ouro.
—Acho que vou ficar com esse suvenir.
Nesse
momento, Santiago e seu grupo chegavam à fortaleza. Carregavam alguns
ferimentos, mas nada de muito grave.
—Coronel,
temos que sair daqui! Agora!
—Do
que está falando, Santiago?
—Os
demônios parecem que voltaram ao seu próprio controle, e não estão nada
satisfeitos com o que Solano fez! Eles estão vindo para cá, e eu que não quero
estar no caminho deles!
Apressados,
eles recolhem todos os pertences que poderiam, e logo montam em seus cavalos
para partir. Hugo, por sua vez, se detém em frente daquela maldita pedra.
Aquele artefato que havia custado a vida de Angel, a vida de um jovem soldado
dos Voluntários da Pátria. Ele saca sua outra Colt Dragoon e, com mais seis tiros destrói por completo o que
havia restado da Pedra de Steuerung.
Solano
via os brasileiros partirem. Ainda estava vivo. Ainda não estava derrotado. Não
importava se aqueles homens venceram aquela batalha, ele ainda tinha uma guerra
para lutar. Assim pensava o ditador paraguaio, até que um mar de demônios,
criaturas de toda sorte, começavam a invadir a fortaleza. Os gritos foram
escutados mesmo pelos soldados brasileiros, que haviam se apressado para não
serem pegos no caminho dos monstros. Solano havia encontrado o seu merecido
destino, finalmente.
Após
a derradeira batalha, os quatro heróis haviam conseguido se reunir apenas duas vezes.
Uma delas fora semanas depois, na cerimônia de condecoração pela vitória e
virtuosismo em combate. Joca, Chico e Santiago também aproveitaram essa
cerimônia para receber Hugo na Armada Milenar como membro oficial, e não um
mero apoio enviado por Dom Pedro II. Depois daquele dia, os quatro nunca mais
lutariam lado a lado ao mesmo tempo, mas os quatro anjos da Armada Milenar
continuariam sendo lendas por mérito próprio.
A
segunda vez em que se encontraram fora no casamento de José Francisco Lacerda,
vulgo Chico Diabo. Dos quatro anjos, que receberam esse nome em homenagem ao amigo Angel, apenas três estavam operantes. Santiago
havia se aposentado dos serviços da Armada para viver uma vida tranquila no
campo, nas terras que haviam sido dadas como prêmio por seus serviços à pátria.
Hugo continuava na guarda imperial, sendo agora o encarregado por assuntos de
ordem “extraordinária”, outra palavra para “sobrenatural”. Joca dava
prosseguimento ao treinamento de Chico, criando no rapaz um sucessor mais do
que digno para no futuro ocupar sua função.
Hugo
e Chico continuaram mantendo contato por carta, e ocasionalmente lutaram lado a
lado, como veteranos da Armada Milenar, até o dia em que morreram. Aqueles que
os acompanharam no campo de batalha, sempre irão lembrar a busca implacável dos
dois por justiça.
Coronel Joca Tavares (terceiro sentado, da esquerda para a
direita) e seus auxiliares imediatos, incluíndo José Francisco Lacerda, mais
conhecido como Chico Diabo (terceiro em pé, da esquerda para
direita).
Foto de 1870
Ola, gostaria de trocar informações sobre a origem dos dados históricos, dado que descendo deles.
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