sábado, 24 de dezembro de 2011

Terceiro Registro: [Fushimi, 1868 - Batalha de Toba-Fushimi]

Por Homura Masato

"Relatório do confronto de 02/01/1868 - Fushimi.
Chovia quando entramos no campo de batalha. Ao meu lado estava Hajime Saito. Nos poucos dias em que conversamos, acabamos por nos conhecer melhor, e o respeito se tornou mútuo. Não havia outro espadachim que eu quisesse ao meu lado naquele momento. Além dele ser capaz de colocar sua alma na ponta da espada como um verdadeiro caçador de demônios, sua lâmina ainda tinha o nome de lâmina de um demônio. Superstição nesses momentos, quando está a nosso favor, é sempre bem-vinda. 

Do outro lado da clareira onde abordamos nossos adversários, conseguíamos ver uma dúzia de criaturas diferentes uma das outras. Dentre os demônios, haviam dois que se destacavam, principalmente por sua aparência mais humana. Um deles exibia um protuberante nariz, enquanto trajava uma armadura samurai bem antiga, que parecia poder desmanchar com qualquer golpe. O outro tinha cabelos prateados, compridos, e parecia rosnar. Havia a estranha impressão de que ele deixava pegadas de neve por onde passava, mas não havia qualquer sinal de neve naquele dia.

A batalha começou, e eles fizeram valer a fama que tinham. Mesmo que estivéssemos em número maior, apenas alguns membros da Armada Milenar conseguiam lutar em igualdade com aqueles demônios. Assim que o confronto começou, eu percebi que tipo de monstros enfrentávamos. O de nariz protuberante e armadura era nada menos que um Tengu. Posteriormente ele nos revelou que havia entrado nesse combate apenas pela diversão. Isso não é um alento para os soldados que perderam suas vidas nesse campo de batalha.
Enquanto eu enfrentava o de cabelos prateados, que eu descobri ser um demônio lobo da neve, Saito enfrentava um dos onis que nos cercavam. Ele conseguia lutar contra aqueles monstros sem grandes dificuldades, mas aquele oni em particular estava dando trabalho ao comandante da terceira unidade do Shinsengumi.
Saito o derrubou com uma estocada incrivelmente rápida, e quando o oni foi ao chão, sua aparência mudou. O rosto com chifres e a carranca dá lugar a um homem de óculos. Eu não consegui acreditar, mas estávamos na frente de Takeda Kanryusai, o capitão do Shinsengumi que havia sido assassinado alguns meses antes.
Corriam boatos de que o próprio Saito havia assassinado Takeda, tendo descoberto que ele havia traído o Shinsengumi e estava se aliando aos imperialistas de Satsuma. Saito não parecia abalado pelo oni assumir aquela aparência, eles apenas trocam uma risada seca e partem para o combate novamente. Era estranho saber que Takeda Kanryusai, o homem que capturou Furutaka Shuntaro, o homem indiretamente responsável pela fama e respeito que o Shinsengumi havia adquirido no incidente da hospedaria Ikeda pudesse ter sido um traidor. Não tão estranho era pensar que Hajime Saito era tão focado a ponto de matar um companheiro de anos a fio pela suspeita dele ser um traidor. Saito era esse tipo de homem, um homem que levava a sua justiça até as últimas consequências.

Meu combate também não estava nada fácil. Lobos são criaturas terríveis, mas se ele era um lobo demônio da neve, eu sempre serei um Lobo de Mibu. Eu sabia que se me descuidasse, aquela criatura poderia me matar num piscar de olhos. Eu deixei ele me acertar um golpe de sua lança, porém tive o cuidado de não deixar a lâmina me tocar. Bloqueando o golpe com meu braço, eu diminuí o espaço entre nós dois, deixando-o perto o suficiente para que sua lança se tornasse inútil. Meu último golpe com o braço direito foi um corte diagonal. Eu usei a resistência e o atrito do chão para ter que forçar mais a espada, criando um efeito chicote que potencializou meu ataque. Ainda assim, não foi o suficiente para matar aquele demônio. Meu braço direito já havia congelado por inteiro, e eu não tinha mais condições de lutar. Felizmente, o demônio também não podia.

Saito àquela altura já havia eliminado o Oni Kanryusai, e correu em meu auxílio. Ele estranhou o pedido para decepar meu braço direito, mas quando lhe expliquei que eu sentia que o congelamento se propagaria para o resto do meu corpo se eu não me livrasse do braço, que já estava completamente inútil, ele não relutou mais e atendeu meu pedido.

Alguns instantes depois, já havíamos espantado os demônios que restaram. Infelizmente não conseguimos eliminar os mais poderosos, que eram o Tengu e o Lobo da Neve, ainda assim conseguimos proteger o artefato enterrado no templo de Fushimi. O bastão de Muso Gonosuke, o único homem a derrotar Miyamoto Musashi, estava a salvo e em posse da Armada Milenar.

Apesar das baixas, reporto completo sucesso na missão. Alguns dias depois, o Shinsengumi seria derrotado na batalha de Toba-Fushimi. Saito, mesmo depois de duelo tão exauriente quanto o que passamos, liderou o Shinsengumi no campo de batalha. Aguardo notícias de sua sobrevivência. Mesmo derrotado, o Japão precisa de homens como ele. Sugiro que a Armada Milenar tente o alistamento dele uma vez mais, dada sua perícia e capacidade, e também seu grande senso de justiça."

 "Oni" - Toriyama Sekien - Ilustrações de 100 demônios 
do Passado e do Presente - 1779

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Segundo Registro: [Fushimi, 1868 - Batalha de Toba-Fushimi]

Por Hajime Saito

"Eu odiava aquela sensação de inutilidade. Estava a quilômetros do campo de batalha, e mesmo assim não podia me envolver. Homura Masato, um dos membros da Armada Milenar, divisão secreta do Shinsengumi, decidiu que seria vital minha presença próximo ao campo de batalha. Eu questionei o porque da necessidade de eu estar perto do campo de batalha, mas não no campo de batalha. Esse embate vai decidir o futuro do Japão, e uma derrota com certeza vai colocar nossa verdade em risco. Homura apenas riu e deu de ombros, balbuciou algo como a nossa derrota já estar definida, o que quase me fez começar uma briga com ele. Só não o ataquei pois logo em seguida ele disse que havia uma batalha muito mais importante, uma batalha pela humanidade como um todo, e que a terceira unidade do Shinsengumi, a minha unidade, era a mais indicada para proteger os inocentes.
Normalmente, um membro da Armada milenar não pode comentar com civis -ou o que eles chamam de civis, o que engloba qualquer um que não seja membro da Armada- os aspectos de seu trabalho. Homura era conhecido por sempre receber represálias dos superiores por não obedecer essa regra. Eu já sabia o que a Armada fazia, em que tipo de batalhas eles se envolviam, mas aquela para qual Homura havia me trazido, seria inacreditável.
Estávamos conversando durante a vigia no acampamento, eu consegui reparar que o quimono branco do Shinsengumi que Homura usava, havia sido lavado muitas vezes num curto período de tempo, e ainda assim havia pequenas manchas de sangue. Dava para perceber que o homem havia se envolvido em uma sequência de batalhas quase ininterruptas. 
Homura era uma pessoa simples, humilde, o que era surpreendente devido a sua linhagem, devido a espada que carregava, e devido a sua posição no Shinsengumi. Ainda me tratava como um superior, da mesma maneira que fazia quando ainda era um mero soldado na décima unidade, a unidade de Harada Sanosuke. Ele me contou que quando a humanidade se envolve em combates violentos e duradouros como a guerra civil que enfrentávamos, era a hora em que os demônios conseguiam inúmeras pontes de acesso para o plano dos humanos. Imagine viver num limbo, num lugar em que pensamentos não existem, em que a existência pode ser colocada em dúvida, e subitamente conseguir uma brecha para escapar, um caminho para um lugar melhor, onde todos os seus desejos reprimidos podem ser explorados. Por isso demônios eram tão perigosos, tão vis e doentios. 
Um soldado de minha unidade questionou Homura quanto as armas utilizadas. Sabia que a Armada havia apreendido alguns mosquetes, e até mesmo uma metralhadora Gatling, capaz de disparar 200 vezes por minuto, e indagava se essas armas não seriam eficazes num embate contra as criaturas de planos inferiores. Homura, mostrando-se muito mais paciente do que eu, explicou que esse tipo de arma não conseguia transmitir a alma de seu portador para o projétil, o que lhe tornava inútil. Não era como o arco e flecha em que havia o contato direto entre homem, arma, e seta, ou como a espada, que era o melhor condutor para a alma do caçador. Não sei porque ri no momento, acreditava piamente que a espada japonesa era a melhor do mundo justamente por ela conseguir transmitir a alma de seu usuário em cada golpe desferido. Talvez eu tenha rido por ainda achar estranho toda essa ideia de caçar demônios. Ou talvez eu tenha ficado nervoso, sabendo agora o motivo de ter sido escolhido para auxiliar a Armada Milenar. Minha alma estava em minha lâmina desde antes de entrar para o Shinsengumi, se a transmissão da alma no golpe era eficaz contra demônios, então eu não tinha nada com que me preocupar.
Nada, além de continuar vivo."


Kijinmaru - A lâmina de Hajime Saito
Kijinmaru significa "Lâmina do Oni", uma espécie de demônio

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Primeiro Registro: [Kyoto, 1864 - Incidente da Hospedaria Ikeda]

Por Homura Masato 

"Um silvo agoniante ecoa pelas ruas de Kyoto. A lua brilha forte no céu. Eu estou nervoso.
É apenas minha segunda semana como membro do Shinsengumi¹, mas graças a minha perícia com a espada, eu estou acompanhando o comandante, Kondo Isami, em uma missão de extrema importância.
Não posso dizer que estou de pleno acordo com os métodos do Shinsengumi . Era possível ouvir os gritos do homem capturado, Furutaka Shuntaro, durante toda a noite. Correm boatos de que o vice-comandante do Shinsengumi, o senhor Hijikata Toshizo, o torturou durante horas, até que ele revelou o local de encontro dos ativistas e dos samurais de Choushu. Não sei se devo confrontar meus superiores quanto aos seus métodos, estou certo de que eles tem em mente o melhor para meu país. Foi por isso que me juntei a eles em primeiro lugar. Ainda assim, fico bastante incomodado.
Perdoem-me se essa carta parece mais um relatório descoordenado, mas a noite do Incidente na hospedaria Ikeda nunca será esquecida.
Quando nos organizamos para a emboscada, nos dividimos em dois grupos. Duas frentes de ataque. Eu estava com o Capitão da Segunda Unidade do Shinsengumi, o senhor Nagakura Shinpachi, e sua equipe. Seríamos a segunda onda de ataque, e pegaríamos a rebarba do ataque do Senhor Kondo Isami. Quando a equipe do senhor Kondo atacou, eu senti algo passando por perto. O ar ficou estranhamente gelado, e ao me virar na direção que havia me incomodado, eu consegui ver uma silhueta correndo em direção à estrada.
Imaginando ser alguém que fugiu da hospedaria e temendo que essa pessoa pudesse por nossos planos em risco, eu corri atrás dele.
Minha espada já estava desembainhada quando eu finalmente o alcancei. Era rápida a criatura, e poderia facilmente ter me deixado para trás apenas correndo, pois não parecia mostrar sinais de cansaço mesmo depois de minha perseguição. Provavelmente havia percebido que apenas eu lhe seguia, e achou por bem me eliminar para poder continuar em seu caminho.
Nuvens cobriam a lua quando nos encaramos, e eu não consegui identificar de imediato o que eu enfrentava. Eu caí repentinamente com o que parecia ser um soco no estômago, e consegui me esquivar de um segundo ataque com um rolamento para o lado. Estávamos longe demais um do outro para eu ter sido atacado daquela maneira. Quando a lua torna a reinar absoluta nos céus, eu quase perco meu fôlego, não conseguia acreditar em meus olhos.
A criatura devia ter quase dois metros de altura,  sua pele parecia breu e refletia em partes a luz da lua, mostrando também que algo oscilava em sua composição. Sua pele não era firme, mais parecia com um amontoado de betume. Eu conseguia ver no chão parte daquela substância que cobria seu corpo, e o que mais me espantava é que essa substância estava se recolhendo para integrar novamente o corpo daquele monstro.
Ele tenta um novo golpe, vindo de cima. Seu braço se alonga, mostrando como ele havia me atingido da primeira vez. Novamente eu rolo para o lado, conseguindo uma brecha para avançar. Com espada em riste, eu arrisco uma estocada, atravessando o monstro com minha Kotetsu². Qual não é a minha surpresa, quando o monstro me joga para longe com o que parecem ser tentáculos saindo de seu peitoral, enquanto o breu devorava minha espada sem quaisquer resquícios de ter sentido o golpe.
Eu caio sobre um de meus braços, e o impacto faz com que eu o quebre. A criatura avança em minha direção e eu não sei o que posso fazer para detê-la. Mais um golpe me acerta, enquanto tentava me levantar, o que me arremessa com as costas contra uma ponte de madeira próxima. Eu olho para o lado e sorrio, estava salvo.
Quando a criatura se aproxima novamente, tentando o derradeiro golpe, eu alcanço uma lanterna no parapeito da ponte, usada para iluminar o caminho de viajantes, e em dois movimentos, eu ateio a criatura em chamas, o monstro de breu desfalece e some como se fosse uma mera lembrança. Minha Kotetsu vai ao chão poucos segundos depois, com a guarda e empunhadura completamente danificados pelo fogo, mas a lâmina ainda parecia perfeita. Nada menos do que se esperaria de uma espada de quase 200 anos.
Poucos momentos depois, sou abordado por homens do Shinsengumi vestindo um curioso uniforme branco com detalhes triangulares em preto nas mangas e na barra do quimono, diferente dos costumeiros trajes azuis com detalhes brancos. Eles dizem ser de uma divisão secreta do Shinsengumi, e que devido ao meu excelente desempenho do dia de hoje, eu estava sendo convocado à divisão dos matadores de demônios, a Armada Milenar. Foi a última vez em que eu fiquei surpreso com algo em minha vida."

¹Shinsengumi - O novo exército dos escolhidos. Era uma força policial que patrulhava as ruas de Kyoto durante o período da Revolução Meiji. Eles tomaram o lado do xogunato, lutando para manter o Japão de portas fechadas a estrangeiros. O incidente da hospedaria Ikeda é dito como tão importante que atrasou a vitória das forças leais ao imperador Meiji em um ano ou dois.
²Kotetsu - A espada Kotetsu era item de cobiça de diversos samurais. Nagasone Kotetsu foi um popular armeiro que viveu de 1597 à 1678 e forjou algo em torno de 30 espadas. Sua lâmina era conhecida por possuir força extraordinária e ser capaz de destruir até elmos.

Uniforme do Shinsengumi